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Como tornar o mundo digital mais seguro para as crianças?

Especialistas apontam a educação midiática como saída para a proteção de crianças e adolescentes na internet

i 9 de dezembro de 2025 - 12h39

Na primeira parte desta reportagem, “Infância digital: riscos em alta e adultos despreparados“, foram ressaltados os riscos que as crianças e adolescentes enfrentam no âmbito online. Embora altamente conectadas e já nascidas dentro de um contexto totalmente digitalizado, os jovens de hoje não têm maturidade crítica para lidar com os perigos que a internet traz, como desinformação, cyberbullying, assédio, exploração sexual e manipulações algorítmicas. Enquanto as meninas são mais afetadas por violência de gênero, assédio, exploração sexual e pressão estética online, os meninos estão mais expostos aos discursos de ódio.

Apesar de avanços como a aprovação do Estatuto Digital da Criança e do Adolescente (ECA Digital) e novas ferramentas de mediação parental, a proteção ainda depende de uma combinação entre políticas públicas, responsabilidade das plataformas e orientação ativa das famílias. “Nós estamos trocando o pneu do carro com ele em movimento, porque a cada hora aparece uma tecnologia nova, então precisamos ficar atentos. Mas, principalmente, saber que é um compromisso de todos. Precisamos cobrar do governo, das plataformas e, sobretudo, precisamos nos conscientizar”, alerta Januária Cristina Alves, especialista em educação midiática.

Responsabilidades das plataformas

Em agosto deste ano, foi aprovada a Lei nº 15.211/2025, conhecida como ECA Digital, que estabelece novos marcos de proteção das crianças e adolescentes na internet, principalmente no que diz respeito às obrigações das plataformas digitais. “Em primeiro lugar, ela estabelece uma obrigação mais geral de que as plataformas incorporem os direitos de crianças e adolescentes em todo o seu design e funcionamento”, destaca João Francisco Coelho, advogado do eixo digital do Instituto Alana.

João Francisco Coelho, advogado do eixo digital do Instituto Alana (Crédito: Camila Svenson)

João Francisco Coelho, advogado do eixo digital do Instituto Alana (Crédito: Camila Svenson)

Algumas das novas determinações são a criação de mecanismos de verificação de idade e supervisão familiar, obrigando a vinculação de contas de usuários menores que 16 anos aos seus responsáveis legais. Além disso, agora, as plataformas devem a incluir novos recursos de controle parental, como a restrição de tempo de uso, contatos e a aprovação de compras.

A lei também estabelece novas demandas acerca da moderação de conteúdo, incluindo a calibração de mecanismos de recomendação para que crianças não sejam expostas a conteúdos inadequados e denúncia de situações que as coloquem em risco. Além de vetar a monetização ou impulsionamento de conteúdos que retratem crianças e adolescentes em situações erotizadas.

Outra determinação é sobre as práticas publicitárias abusivas, como a publicidade infantil, que já é ilegal no Brasil, e a publicidade velada, também proibida pelo Código de Defesa do Consumidor, mas que ainda são muito frequentes no ambiente digital. “Agora a Agência Nacional de Proteção de Dados será responsável por fiscalizar o cumprimento dessas obrigações. As plataformas precisarão apresentar relatórios periódicos, demonstrar quais conteúdos removeram e como estão implementando as exigências da lei. A agência poderá aplicar sanções, como multas e até suspensão das atividades, em casos mais graves ou de violações reiteradas”, complementa Coelho.

O poder do questionamento

Diferentemente do letramento técnico, que ensina as habilidades de uso, a educação midiática visa fomentar o pensamento crítico. Tendo isso em vista, o governo brasileiro também aprovou a atualização da Estratégia Brasileira de Educação Midiática, que deverá ser aplicada a partir do ano que vem (2026). A primeira estratégia foi aprovada em 2023 e coordenada pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom), trazendo políticas que visam à formação de professores, o enfoque na educação básica e nas temáticas relacionadas ao uso de telas e dispositivos por crianças e adolescentes.

Já a atualização deste ano traz a inserção da educação midiática nos livros didáticos, além de uma série de cursos sobre o tema, diretrizes para o uso de celular nas escolas e a integração curricular para que todas as escolas do país abordem o assunto em suas grades.

“O pensamento crítico é o maior objetivo da educação. Você quer formar uma pessoa que pense, que questione, um ser humano curioso. Não podemos criar uma geração que, de tão acostumada com mentiras e fake news, passe a duvidar de tudo. Precisamos criar uma geração desconfiada. Essa é a diferença entre ser cético e ser cínico”, reflete Januária.

“Aprender a perguntar e a pesquisar é fundamental. Quando você constrói seus referenciais, você desenvolve o que chamamos de segurança epistêmica, que significa a proteção do conhecimento coletivo contra ameaças como desinformação, notícias falsas e manipulações, garantindo que os indivíduos possam distinguir fatos verificados de alegações infundadas”, continua.

Cidadãos digitais

Apesar do importante passo que o governo deu neste âmbito, a especialista alerta que a educação midiática deve ser abordada em diferentes campos, incluindo dentro de casa, pelos responsáveis. “Sabemos que a família é o primeiro núcleo da criança e também o seu maior exemplo, a sua maior inspiração”, pontua Alves. Ela destaca que os responsáveis também precisam se informar e acompanhar a educação digital das crianças.

“Antes de abrir esse espaço para uma criança ou para um adolescente, precisamos entender que idade ela tem, quanto tempo ela pode ficar exposta a uma tela e o que ela vai ver naquela tela”, complementa Eva Dengler, superintendente de programas da Childhood Brasil.

Eva Dengler, superintendente de programas da Childhood Brasil (Crédito: Divulgação)

Eva Dengler, superintendente de programas da Childhood Brasil (Crédito: Divulgação)

Para Januária, os responsáveis precisam primeiro se observar e servir de exemplo. “As famílias têm esse papel do diálogo, dos combinados e, principalmente, do exemplo. Pais, mães e cuidadores também precisam se observar como cidadãos digitais. Como estamos nos comportando? Será que não estamos viciados demais no celular? Como quero controlar o uso do meu filho se eu mesmo fico até dez horas da noite no meu?”, questiona.

O governo brasileiro lançou o “Guia sobre Usos de Dispositivos Digitais”, que aborda a mediação parental, os riscos e as oportunidades do uso da internet pelas crianças e adolescentes, como identificar sinais de alerta, formas de denúncia e até a idade adequada para se ter um celular. O guia elenca algumas ações que se enquadram na chamada “mediação familiar”, como a comunicação aberta, tempo de qualidade em família, refeições sem distrações, limitação de tempo de uso, a priorização de atividades escolares, o estabelecimento de uma rotina de sono, o ensino de habilidades digitais e midiáticas, o incentivo à atividades ao ar livre, entre outros.

Luisa Adib, coordenadora da pesquisa TIC Kids Online Brasil, destaca que a mediação ativa, ou seja, o diálogo e acompanhamento, é a forma mais efetiva de prevenção à riscos na internet. “A gente reforça a necessidade de um uso acompanhado e adequado, e não de uma restrição absoluta da presença da criança na internet. Até porque hoje isso seria muito difícil, talvez até irrealizável”, afirma.

A conversa, antes de tudo, também é um modo de prevenção. “Os pais precisam ser esse porto seguro, porque, se acontecer qualquer coisa com o seu filho, a referência é você. A gente tem visto muitos que são assediados, recebem ameaças e ficam calados, não pedem ajuda, e às vezes isso termina muito mal”, pontua Alves.

Um dos temas que a especialista em educação midiática destaca como importante é o funcionamento dos algoritmos. “A maior parte das pessoas não têm esse conhecimento. Isso é fundamental para entender como as plataformas nos colocam em bolhas, oferecendo mais do mesmo, fazendo com que a gente não veja coisas diferentes e não aprenda a respeitar pontos de vista distintos”, ressalta Januária.

Januária Cristina Alves, jornalista, educomunicadora e especialista em educação midiática (Crédito: Divulgação)

Januária Cristina Alves, jornalista, educomunicadora e especialista em educação midiática (Crédito: Divulgação)

“Também temos insistido que os pais lembrem que a filha ou o filho podem não estar usando as redes digitais da maneira correta. Ele ou ela pode ser inclusive uma criança ou adolescente que provoca alguma situação de bullying, de exposição ou humilhação de outra criança nas redes sociais”, alerta Dengler.

Aliado à orientação, existem também os combinados que podem ser apoiados pelos recursos de controle parental das plataformas. Eva alerta para a atenção a todos os canais em que os filhos possam estar. “O TikTok tem sido muito usado pelos adolescentes e não é apenas um espaço de troca de vídeos, pois tem canais de conversa e muitos pais desconhecem isso. Eles monitoram outras conversas, mas não monitoram o TikTok. Tivemos o caso de uma menina que fugiu de casa para encontrar uma pessoa que conheceu online, e todo o combinado aconteceu pelo chat da rede social, justamente o espaço que a mãe e a irmã mais velha não acompanhavam”, relata a superintendente.

Existem diferentes guias online que tratam sobre educação midiática, seja pelos responsáveis ou pelos educadores. O guia “5 contribuições da educação midiática aos direitos das crianças na internet”, do EducaMídia e Instituto Palavra Aberta, é um exemplo que trata dos seguintes eixos: segurança da criança, autonomia e criticidade da criança quanto à sua imagem nas redes sociais, compreensão dos influenciadores digitais e suas responsabilidades, desconstrução de padrões estéticos e sociais e saúde digital.

A Sociedade Brasileira de Pediatria também disponibiliza um manual de orientação chamado “#MenosTelas #MaisSaúde”. O Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br) tem outro guia, intitulado “#Internet com Responsa Só para Adolescentes: Proteção no Uso da Internet”.

O debate continua

“A gente sabe que só o controle parental ou instrumental não será suficiente. O letramento e a educação midiática são o segundo passo que a sociedade precisa dar. Mas, antes disso, as estruturas oferecidas têm que ser pensadas com essa lógica”, reflete Luisa. “É importante trazer uma perspectiva realista, adequada, responsabilizando os atores que precisam ser responsabilizados, criando mecanismos de verificação, regulação e mediação, para que a criança consiga desenvolver gradualmente a habilidade de expandir seus ambientes dentro desse grande ecossistema que é a internet”, continua a pesquisadora.

Luisa Adib, coordenadora da pesquisa TIC Kids Online Brasil (Crédito: Divulgação)

Luisa Adib, coordenadora da pesquisa TIC Kids Online Brasil (Crédito: Divulgação)

“Embora tenhamos uma lei muito forte, capaz de colocar o Brasil ao lado dos países mais avançados na proteção de crianças e adolescentes no digital, este é um ambiente em constante transformação”, pontua João Coelho. “A lei dá conta de muitos desafios que existem hoje, mas esses desafios mudam muito rapidamente com a evolução das tecnologias”, complementa.

“Por isso, acho muito importante que a gente não considere que o ECA Digital encerra o debate. Mas, se não fizermos um movimento constante de atualizar a lei, pensar em novas regras, acompanhar a evolução tecnológica e manter vigilância sobre esse debate, há uma chance real de ela ficar defasada rapidamente”, finaliza o advogado.