Infância digital: riscos em alta e adultos despreparados
Bullying, assédio e violência sexual contra crianças e adolescentes ocorre nas redes digitais sem conhecimento dos responsáveis
A nova geração de pais está enfrentando um desafio inédito: criar filhos que já nascem em um ambiente digital plenamente ativo. A tecnologia avança numa velocidade acelerada nos últimos 20 anos, por vezes, mais rápida do que a nossa capacidade de compreender seus riscos e danos, criando um descompasso que se manifesta inclusive na legislação. Um avanço que pouco levou em consideração as crianças e adolescentes que inevitavelmente utilizam este espaço.
“Nada do que foi criado nesses últimos 20 anos foi pensado para eles. Tudo foi feito para adultos. E se nós, adultos, já vivemos riscos de golpes, fraudes e situações que muitas vezes não conseguimos manejar, imagina uma criança ou um adolescente”, alerta Eva Dengler, superintendente de programas da Childhood Brasil.
A segurança das crianças na internet é um tema que está em alta no momento. Em 2025, os celulares foram proibidos na sala de aula, o vídeo sobre adultização de crianças do influenciador Felca viralizou e ainda tivemos a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente digital. A nova lei, aprovada em setembro, garante a proteção de crianças e adolescentes no ambiente virtual.
Como aponta João Francisco Coelho, advogado do eixo digital do Instituto Alana, os preceitos do ECA já se aplicavam anteriormente no contexto online: “Mas faltava, no ordenamento jurídico brasileiro, uma lei que detalhasse as obrigações, principalmente das grandes plataformas digitais, no que diz respeito à proteção desse público”, afirma.
Um ponto anterior a este debate e que precisa ser ressaltado é que habilidade técnica é diferente de habilidade analítica e crítica. Ou seja, não é porque a criança nasceu com o dedo na tela que ela entende os riscos e consequências do seu comportamento online.
“As pesquisas mostram que as crianças e adolescentes são as maiores vítimas de teorias conspiratórias, cyberbullying, discursos de ódio, assédio e violência sexual digital. Então, a habilidade técnica não garante que a pessoa seja um cidadão digital crítico e consciente, capaz de escolher conteúdos e, principalmente, de entender o funcionamento das plataformas”, destaca Januária Cristina Alves, jornalista, educomunicadora e especialista em educação midiática.
Como as crianças usam a internet?
A TIC Kids Online é uma pesquisa realizada desde 2012 que acompanha oportunidades e riscos relacionados à participação online da população de 9 a 17 anos no Brasil. Em mais de dez anos de análise, Luisa Adib, coordenadora da TIC Kids Online Brasil, afirma que a proporção de crianças com acesso à internet cresceu exponencialmente, chegando a 92% em 2025. A qualidade da internet, frequência e usos variam entre idades e classes sociais.
De acordo com a pesquisadora, o principal uso pelas crianças é para pesquisa e trabalhos escolares, mas existe um crescente consumo de materiais multimídia, incluindo vídeo e áudio, além de jogos e redes sociais. Uma das diferenças no uso entre meninos e meninas é justamente estes últimos dois tópicos. Meninos fazem um uso mais extensivo de jogos online, e meninas de redes sociais. “Este ano, meninas reportaram uma frequência um pouco maior no Instagram e no TikTok, mas a posse de perfil e a presença nas redes são muito parecidas entre os dois”, afirma Luisa.
Tendo em vista o contexto apresentado anteriormente, a pesquisa deste ano identificou uma nova tendência: a queda no uso do celular, principalmente entre os mais novos. “Pode ser o início de algo que precisamos observar melhor, talvez uma maior preocupação das famílias e da sociedade”, avalia Adib. Enquanto a posse de celular para a faixa de 9 a 10 anos era de 67% em 2024, este ano ela reduziu para 55%, assim como na faixa de 11 a 12 anos, que caiu de 79% para 69%.
Outra diferença entre meninos e meninas identificada pela pesquisa é a percepção sobre as habilidades digitais. “Eles tendem a reportar habilidades digitais maiores do que as meninas, que percebem suas habilidades como menos desenvolvidas. A gente relaciona isso a um contexto de cobrança maior sobre as meninas, inclusive no sentido de serem mais críticas em relação a si mesmas”, destaca a coordenadora.

Luisa Adib, coordenadora da pesquisa TIC Kids Online Brasil (Crédito: Divulgação)
A TIC Kids também analisa como os pais estão mediando o uso da internet dos filhos. A principal medida utilizada é a orientação, incluindo regras sobre o uso do celular, a restrição total do uso do aparelho e supervisão sobre as atividades realizadas, com uma maior incidência sobre os mais jovens. Entretanto, a coordenadora alerta: os mais velhos também precisam de orientação: “Eles engajam em mais coisas, estão presentes na rede com mais frequência e, consequentemente, estão mais expostos aos riscos”, pontua.
Mediação e controle parental
De acordo com o relatório “Redes de Proteção Desafios e Práticas” do ITS Rio (Instituto de Tecnologia e Sociedade) e do Redes Cordiais, 60% dos responsáveis acham “difícil” ou “muito difícil” fazer o acompanhamento digital dos seus filhos, e sentem necessidade de maior capacitação e suporte para as famílias. Além disso, 43% nunca usaram ferramentas ou recursos para o acompanhamento de menores na internet, sendo a definição de limites para o uso de celular (71%), incentivo a atividades offline (70%) e conversas sobre uso seguro (64%) as práticas mais aplicadas.
Para Januária, os pais precisam superar o medo de falar sobre os hábitos digitais das crianças e a ideia de que seus filhos, nativos digitais, sabem mais sobre o tema. “Existe esse preconceito de ‘imagina que eu vou entrar nesse Roblox, nesse Discord, eu não sei nem como faz’. Há outros que dizem: ‘meu filho burla, descobre um jeito, eles sabem muito'”, diz Alves.

Januária Cristina Alves, jornalista, educomunicadora e especialista em educação midiática (Crédito: Divulgação)
O estudo da TIC Kids elenca diversas ferramentas e modos de mediação parental, incluindo o uso sob supervisão, permissões, restrições, regras, uso de recursos de controle parental das próprias plataformas e claro, a orientação. “Agora, as próprias plataformas estão desenvolvendo recursos de mediação para os responsáveis, uma determinação do ECA Digital. De modo geral, cerca de 30% usam esses recursos”, afirma Adib. “Já sabemos que o uso isolado dessas ferramentas não é efetivo. Ele pode trazer potencial como parte de uma estratégia combinada, mas o responsável precisa ter conhecimento do recurso para que seja realmente efetivo”, defende a pesquisadora.
Sobre os temas de orientação, Luisa destaca alguns assuntos que costumam ser abordados: “Há orientações sobre tempo de uso, sobre sites confiáveis ou não, sobre como se comportar com pessoas quando estão em ambientes online e sobre publicidade e propaganda”, elenca. “Temos um módulo específico para investigar a publicidade velada, porque muitas vezes a criança é exposta a um conteúdo que se mescla ao entretenimento, algo muito comum nas plataformas, e ela nem sempre reconhece que aquilo é publicidade”, continua.
Outro ponto de alerta destacado pela pesquisa é o baixo reporte de situações online para os responsáveis. Quando a criança é exposta à alguma circunstância de risco, em geral, os primeiros a saberem são pares da mesma idade. Depois é que entram os responsáveis.
Bullying, violência sexual e ódio
Existem três dimensões para os riscos aos quais as crianças e adolescentes estão expostos na internet: o contato, quando ela se relaciona com um desconhecido, potencialmente um adulto; o conteúdo, ou seja, o acesso a um material não apropriado para sua idade; e contratual, quando ela aceita termos para participar de certos espaços que podem envolver publicidade ou alguma troca não equilibrada entre usuário e empresa. “Além disso, há riscos transversais, como os associados à privacidade e à saúde, que atravessam toda a experiência”, afirma Adib.
Quando falamos de meninas, há alguns riscos aos quais elas estão mais sujeitas que os meninos. Isso porque a internet é um espelho do mundo offline e, por vezes, pode reproduzir as discriminações que recaem sobre grupos marginalizados. “Em alguns indicadores de discriminação ou bullying, as meninas aparecem com proporções maiores, principalmente no que se refere à aparência física, discriminação por causa da roupa que estavam usando ou por algum aspecto físico”, destaca a pesquisadora.
Além disso, a violência sexual também impacta mais elas. “A busca por meninas para fins de abuso ou exploração sexual é muito mais comum, embora hoje também aconteça com meninos”, pontua Eva. Elas costumam ser mais requisitadas a compartilhar conteúdo sexual, fotos e imagens autogeradas, até mesmo por pares da mesma idade, que podem ser amigos ou namorados. Entretanto, há um grande risco destas imagens serem usadas contra elas em outra situação.

Eva Dengler, superintendente de programas da Childhood Brasil (Crédito: Divulgação)
A prostituição também parece ter migrado para o ambiente digital. “A gente tem um programa na Childhood que treina caminhoneiros para serem agentes de proteção de crianças nas estradas do Brasil. E estamos vendo que aquela dinâmica de oferta de programas sexuais com crianças, que antes era presencial nos postos, agora está chegando diretamente no WhatsApp desses profissionais”, alerta Dengler.
Outra ferramenta que está criando novos riscos às crianças e adolescentes é a inteligência artificial. A própria pesquisa da TIC Kids aponta que 65% deste público utiliza a IA generativa para alguma atividade como estudo e pesquisas escolares, busca de informação, criação de conteúdo e para conversar sobre aspectos pessoais.
“Além da criação de imagens de abuso e exploração sexual, existe esse fenômeno de IA sendo usadas como ‘terapeutas’, algo muito preocupante para o desenvolvimento dessas pessoas. Há ainda os impactos na educação: não só a entrada dessas tecnologias na sala de aula, mas o efeito concreto que elas têm no aprendizado”, ressalta João Coelho.

João Coelho, , advogado do eixo digital do Instituto Alana (Crédito: Camila Svenson)
Para Eva Dengler, o aumento do tempo online também apresenta riscos para o desenvolvimento das crianças. “Estarmos cada vez mais conectados nas experiências online, nos afastando das experiências presenciais e, muitas vezes, as substituindo, é um grande perigo não só para crianças e adolescentes, mas para a sociedade como um todo”, afirma.
A exposição de imagens e dados pessoais é outro risco que afeta tanto adultos quanto crianças. “Ficou muito mais fácil para quem pratica violações, de qualquer tipo, fazer isso na internet. Não estamos falando só da violência sexual. Há roubos, fraudes, uso indevido de imagens, uma série de crimes”, destaca a superintendente. Exposições que, inclusive, podem ser provocadas pelos próprios responsáveis ao compartilhar imagens dos filhos sem sua consciência.
O contato com desconhecidos pode ocorrer em diferentes plataformas, inclusive entre meninos, nos jogos online. “Esses games conectam crianças e adolescentes do mundo inteiro que não se conhecem. Ali é muito fácil que pessoas mal-intencionadas criem perfis falsos para dialogar com crianças e adolescentes”, ressalta Dengler. Ela diz que esses encontros podem, inclusive, se materializar em presenciais. “Temos relatos de adolescentes que passaram meses conversando na internet e depois combinaram um encontro no shopping. E os pais acham que deixar a adolescente na porta do shopping significa que ela está segura ali”, continua Eva.
Para os meninos, em geral, os riscos podem aparecer em dinâmicas que ocorrem em plataformas de jogos, como o Roblox e Discord, envolvendo discursos de ódio. “Ali surgem outras preocupações: grupos de ódio, dinâmicas de masculinidade extrema, espaços onde se reforçam posturas machistas e comportamentos violentos contra mulheres”, destaca a superintendente do Childhood.
De acordo com ela, sem um movimento coordenado de diferentes atores, pais, educadores, plataformas, sociedade e estado, para promover uma educação midiática, podemos desenvolver uma geração alienada e com pouca capacidade de discernimento desses riscos.
Impactos da violência
O que acontece em muitos casos é a relativização das consequências dessas violências para as crianças, simplesmente por terem ocorrido no ambiente digital. A gerente do Childhood adverte sobre a minimização de casos que ocorreram online: “Minimizar porque foi digital é muito perigoso. A ideia de que ‘não teve contato físico’, ‘não teve penetração’, ‘não aconteceu ao vivo’ cria uma falsa impressão de que é menos grave”.
O que as especialistas apontam, na verdade, é que estes impactos são ampliados. “A violência online deixa a criança ainda mais impotente, porque ela sabe que está muito mais exposta a muito mais pessoas ao mesmo tempo. Não é só uma ou duas pessoas que viram uma determinada situação. De repente, milhares estão vendo aquilo que aconteceu com ela”, alerta Eva. O resultado são crianças e adolescentes sucumbindo à depressão, síndrome do pânico, ansiedade, e até mesmo a casos mais graves de automutilação e suicídio.
A educação midiática se apresenta como saída para a prevenção destes riscos, porém, ela exige ação de todos: pais, educadores, governo e até plataformas. Com a aprovação do ECA digital, por exemplo, as plataformas devem se adaptar para promover maior proteção às crianças e adolescentes, assunto que será melhor explorado na segunda parte desta reportagem, que também abordará os preceitos e pilares da educação midiática, os papéis das diferentes entidades e como as novas políticas podem modificar este contexto.