Masculinidade em disputa: quem forma os homens do futuro?
Apesar dos movimentos que questionam a masculinidade hegemônica, os números de violência contra as mulheres não diminuem
O mais recente relatório de tendências masculinas do Pinterest revela dados sobre o comportamento de busca dos homens na plataforma, principalmente dos jovens da geração Z. O estudo destaca que o público masculino que acessa a rede está em busca de novas referências sobre autocuidado e saúde, moda, decoração e até conteúdos relacionados à paternidade, no caso dos millennials.
O levantamento demonstra como alguns homens estão buscando construir novos modelos de masculinidades a partir do cuidado de si e dos outros, o que contrasta com a dominante hierarquização dos gêneros sob uma perspectiva binária, que subjuga o feminino.
Masculinidade hegemônica
De acordo com Tulio Custódio, sociólogo e sócio da Inesplorato, a masculinidade dominante é um modelo calcado numa lógica de poder e violência. “Não estou falando apenas da violência física, mas de outras formas. Violência é, por exemplo, a quebra de laços e de vínculos afetivos. A impossibilidade de expressão emocional e afetiva de um homem que não pode se mostrar vulnerável ou construir laços reais e concretos com os seus e com as suas é uma violência.”
Além disso, o projeto de masculinidade hegemônica baseia-se também na competitividade. “Primeiro, esse homem exerce controle sobre mulheres e sobre tudo o que é inferiorizado a ele, não apenas em termos de gênero, mas de raça, classe, corpo, território. Ele também se estabelece a partir da rivalidade com outros homens, porque esse trono só tem lugar para um, não para vários”, continua o sociólogo.
Segundo ele, este é o modelo que ainda está em vigência na sociedade e organiza todas as formas de relações sociais, profissionais, afetivas, familiares, de amizade, entre outras. “Isso é construído numa lógica de consensos e legitimação. Ou seja, não é porque sabemos que é ruim que deixamos de fazer parte desse projeto. Construímos consensos ao redor dele, e isso faz com que outras possibilidades e experiências de masculinidade fiquem diluídas, perdidas”, pontua.

Tulio Custódio, sociólogo e sócio da Inesplorato (Crédito: Divulgação)
Apesar de apresentar um movimento de questionamento da masculinidade patriarcal, a realidade de acesso ao Pinterest representa um tipo de público nichado. “Que homem é esse seguindo tendências de moda e arquitetura? É um homem muito específico. De que classe? De que idade? De que sexualidade?”, questiona Andrio Robert Lecheta, pesquisador sobre masculinidades e líder da equipe editorial do Papo de Homem.
Além disso, trata-se de uma visão baseada na estética, atrativo principal da plataforma. “As redes sociais estão formando esses novos homens. O relatório aponta que eles estão redefinindo suas masculinidades a partir do autocuidado. Mas, lendo aquilo, me veio a ideia de que essa masculinidade produzida na internet é também uma masculinidade muito estética”, pontua Andrio.
“É claro que é bonito, interessante e instigante pensar nas novas gerações quebrando tabus e preconceitos. Mas isso não necessariamente altera as estruturas. O fato de homens pintarem a unha, usarem saia, dançarem e mostrarem sensibilidade não alterou, por exemplo, os dados do último Atlas da Violência sobre violência contra a mulher, que aumentou”, destaca Custódio.
Isolamento, violência e desamparo identitário
A violência é apenas uma das consequências que a masculinidade hegemônica patriarcal provoca. Os dados mais alarmantes apontam que o feminicídio segue sendo um problema endêmico, que reuniu milhares de pessoas em protestos ao redor do Brasil no último domingo, 7, contra os assassinatos de mulheres por questões de gênero.
Mulheres e crianças acabam sendo as principais vítimas das violências físicas e sexuais cometidas por homens. Entretanto, Tulio pontua outra forma de violência que impacta principalmente os meninos: a da criação. “As crianças, especialmente os meninos, são criadas de maneira violenta, afastadas da interlocução e da conexão, para formar um ‘guerreirinho’, alguém que vai viver isolado, que tem que aguentar tudo porque ‘é homem’”, afirma. Esse projeto de masculinidade amplia o isolamento masculino, o silêncio, e agrava a incapacidade de diálogo e escuta ativa dos homens em relação às necessidades dos outros, especialmente de mulheres.
O sistema capitalista acentua a competição, onde apenas uma parcela muito pequena da população, em especial homens brancos do norte global, alcançam o lugar de poder. O isolamento e as condições de vida acabam deteriorando a saúde mental daqueles que nunca realmente conseguem cumprir com as exigências. “Além da saúde mental negligenciada, os problemas com álcool e outras drogas acabam sendo normalizados porque ‘é coisa de homem’”, reflete Pedro Figueiredo, fundador da Memoh.
A incompletude do arquétipo do homem patriarcal também gera uma sensação de desamparo identitário, termo identificado pela pesquisadora Susana Muszkat, que estuda grupos de homens agressores. “Esses homens não agrediram porque são homens, mas porque queriam ser homens. Ou seja, diante do desamparo que sentem ao não conseguir exercer o lugar esperado pelo projeto de masculinidade hegemônica patriarcal, eles dobram a aposta e exacerbam comportamentos violentos para demonstrar que são homens”, pontua Custódio.
Pela criação violenta, onde não houve espaço para falar sobre os sentimentos, os homens crescem com um repertório emocional atrofiado para lidar com essas situações. A violência se torna a única saída ensinada, o que inevitavelmente também impacta nas relações que estes indivíduos estabelecem ao longo da vida.
Críticas ao modelo hegemônico
Para os especialistas, o movimento de questionar o status quo da masculinidade entre os homens ainda é incipiente, mas ganha força com a luta por equidade encabeçado pelas mulheres. Dentro dessas discussões, o projeto da masculinidade hegemônica tem sido colocado em xeque, e provocado os homens a questionarem seus comportamentos.
Pedro Figueiredo reforça que não se trata de um debate sobre aprimoramento individual. O foco da questão precisa sair do lugar da competitividade, do individualismo, e ser deslocado para o coletivo, na equidade e na luta por direitos e oportunidades iguais.
Apesar do relatório de tendências apontar um movimento das novas gerações, para o sociólogo, o questionamento da masculinidade hegemônica não é exclusivo de nenhuma geração. Ele permeia todas as faixas etárias. Entretanto, do lado oposto, também cresce os discursos contrários, que reforçam os padrões patriarcais e que também estão presentes em todas as gerações.
Masculinidade estética e onda ‘masculinista’
“Existem gerações que propõem rupturas e, ao mesmo tempo, dentro da mesma faixa etária, há um contingente grande de gente tentando manter tudo como está”, pontua Pedro. “Então existe uma masculinidade estética, ao mesmo tempo em que há esse atravessamento dos jovens que estão sendo formados dentro do conservadorismo das plataformas”, adiciona Andrio.
Figueiredo chama o movimento de backlash, ou de reforço da masculinidade hegemônica, de “onda masculinista”. “Ela se aproveita de uma certa fragilidade de pertencimento, de um isolamento que as redes sociais tendem a gerar, do desamparo desses meninos, muitas vezes sem referências masculinas com quem possam dialogar, e os puxa para dentro desse discurso”, reflete.
“Por isso que me incomoda quando surge um discurso voltado para meninos e adolescentes dizendo que eles vão ser os responsáveis por mudar tudo. Parece que estamos jogando nas costas deles uma responsabilidade enorme, quando, na verdade, eles precisam de ajuda”, continua Figueiredo.
Gerações e masculinidades
A pesquisa “Meninos: Sonhando os Homens do Futuro”, realizada pelo Instituto PDH com a Natura, apontou como os meninos estão amplamente desamparados. 6 em cada 10 deles disseram ter poucas referências positivas de masculinidades com quem convive no cotidiano. 5 em cada 10 dos adolescentes entrevistados têm dúvidas sobre o amor paterno.
“Na mesma pesquisa, os meninos responderam que, a cada 10, 6 veem o pai como principal referência de masculinidade, boa ou ruim. Isso mostra que esses meninos estão olhando para os lados à procura de algo, tentando entender, e muitas vezes não encontram”, afirma Andrio.
Para Pedro, quem tem responsabilidade de questionar a masculinidade hegemônica e propor novos modelos são as gerações mais velhas, e não as crianças e adolescentes: “São eles que têm poder, que têm a caneta para assinar mudanças concretas, estruturais. Nós, enquanto homens adultos que entendem o contexto social, precisamos tomar iniciativa, assumir essa responsabilidade, e não depositá-la nas novas gerações”.
O discurso sobre os modelos de masculinidade para as novas gerações está em disputa. Figueiredo reforça que a questão está em debate, mas os mais jovens não serão tutelados a escolher um lado ou outro, afinal, têm autonomia e pensamento próprio. Eles precisam, então, enxergar novos modelos possíveis de masculinidades. “Os homens mais velhos devem repensar suas práticas para que isso reflita nas gerações mais novas, para que possamos construir os meninos e transformar os homens”, reforça Andrio.

Andrio Robert Lecheta, pesquisador sobre masculinidades e líder da equipe editorial do Papo de Homem (Crédito: Divulgação)
“Quem vai direcionar? Quem vai servir de referência? Que modelos são esses? E, além disso, que visão de mundo e postura ética queremos ter em relação às pessoas com quem convivemos? É isso que está em disputa”, destaca Figueiredo.
Infelizmente, não é uma questão simples, com uma única resposta clara e objetiva. Trata-se de um debate complexo, sem solução fácil. “É preciso manter uma postura crítica, uma avaliação constante, uma troca, uma abertura para a conversa. É algo mais fluido, mas com a intencionalidade muito clara de contribuir para a transformação social, para um mundo mais justo, que as mulheres vêm puxando há tanto tempo”, reforça Pedro.
“Até agora, nas discussões sobre masculinidade, a gente tem apontado problemas. Estamos mapeando eles, e isso é fundamental, mas também precisamos construir caminhos, e já existem lugares que fazem isso”, complementa Andrio.
“Essa lacuna cria muita confusão, e diante da insegurança gerada por ela, as pessoas acabam facilmente cooptadas por discursos que oferecem soluções fáceis. E, como tudo o que diz respeito à sociedade, as coisas são mais complexas”, pontua Tulio.
O excesso de informações também gera confusão e impotência, o que, por consequência, impulsiona a busca por respostas fáceis. “Somos iludidos por ideias como: ‘é só os homens voltarem a ser o que eram’, ‘é só os homens retomarem o poder’, ‘é só mostrar que as mulheres têm o problema XYZ’”, continua o sociólogo.
“Na Memoh, a organização da qual eu faço parte, não tem um curso para você ‘se tornar um masculino saudável’ e sair de lá com um selo do Inmetro de homem desconstruído. Não é isso. Esses caras [onda masculinista] vendem fórmulas e soluções prontas. É um discurso enganador, charlatão mesmo, mas que funciona na internet”, provoca Pedro.
Trata-se de um contexto em disputa, em que meninos fragilizados, confusos e desamparados se veem num vácuo de referências positivas de masculinidade que contrapõem o projeto hegemônico. Para Custódio, a saída está no diálogo: “O que existe é complexidade, questões que precisamos entender, conhecer e debater para, de fato, avançar”.
Novos modelos
O problema não são as masculinidades, mas, sim, o projeto hegemônico patriarcal. “O que deveríamos fazer é investigar, descobrir e trazer outros modelos, justamente para preencher essas lacunas. E eles existem: em terreiros, agremiações populares, ocupações, quilombos, organizações de aldeias, de povos originários”, pontua Tulio.
São modelos que abandonam a lógica da violência, do poder, da binaridade, da hierarquia ou da dominação e buscam se basear em novos pilares como o diálogo, a escuta, o cuidado, o não-binário e a coletividade. “Todos os exercícios que a gente enxerga em outras sociedades, como os Baniwa, os terreiros de origem Yorubá, de Banto, de Xangô, de Jeje, enfim, agremiações e sociabilidades voltadas para laços de troca, diálogo e organização mostram isso. Mesmo quando há estrutura e hierarquia, não são baseadas na violência, mas na responsabilidade”, complementa o sociólogo. A responsabilidade, nesse sentido, está vinculada ao coletivo e à manutenção daquele grupo ou sociedade.
“São características que se contrapõem ao modelo hegemônico. Especialmente por não estarem pautadas na binaridade do ‘ou-ou’, ou masculino ou feminino, e por não se estruturarem numa hierarquização dessas relações”, complementa Custódio.
A própria paternidade pode ser um exercício de novas masculinidades. Para Tulio, pode ser tanto um remédio quanto um veneno: “Muitos homens têm se sensibilizado para a discussão das masculinidades a partir da paternidade. Mas ela também pode ser uma armadilha, porque um outro modelo de masculinidade pressupõe entender a nossa responsabilidade na sociedade, no coletivo. Não estamos atrelados apenas ao fato de sermos pais, mas de sermos parte de uma comunidade”.
Como apontou a pesquisa do Papo de Homem, o pai, muitas vezes, serve de exemplo de masculinidade para seus filhos. Partir deste lugar de cuidado, que demanda presença, responsabilidade e intencionalidade, pode transformar os modelos de homens que as próximas gerações vão seguir. “Além do exemplo, acho que é importante colocar a criança em ambientes respeitosos, onde existem divisão de tarefas dentro de casa e relações equânimes de gênero. Ter essa preocupação com sua rede de contatos, com os lugares que você frequenta, para oferecer ambientes diversos e baseados em respeito mútuo, é uma forma de educar também”, complementa Pedro.
Uma das soluções apontadas é a criação de espaços de diálogo, tanto para jovens quanto para adultos. “Oferecer mais lugares para receber esses jovens, mais espaços para dialogar com eles, é o que a gente pode fazer para evitar que se enfurnem e se radicalizem justamente num momento em que ainda estão em desenvolvimento”, explica Figueiredo.
Para ele, o acolhimento é necessário, especialmente para quem revisita erros e vivências problemáticas, mas não pode ser o único foco. “A vulnerabilidade é porta de entrada, mas a transformação exige compreender que estamos diante de uma questão social”, continua o fundador da Memoh.
Na prática
Andrio observa uma abertura crescente entre meninos para repensar práticas. O problema é a falta de lugares que favoreçam essa reflexão. “Os homens não falam porque não se sentem seguros. Têm medo de serem repreendidos. Não que essa repreensão seja equivocada, mas ela silencia”, diz. Segundo ele, rodas de conversa entre homens, muitas vezes mais eficazes quando mediadas por outro homem, oferecem o material bruto necessário para elaborar comportamentos, por mais problemáticos que sejam.
A construção de coletivos masculinos saudáveis, não pautadas na “onda masculinista”, porém, ainda esbarra em desafios estruturais. Embora a Lei Maria da Penha preveja grupos para autores de violência, iniciativas voluntárias de discussão sobre masculinidades seguem restritas ao esforço de profissionais isolados. “Há quem critique: ‘vão destinar dinheiro para homens chorarem seus traumas enquanto mulheres morrem?’. Eu entendo, mas esse paralelo é equivocado. Esses coletivos podem justamente impedir que violências aconteçam”, afirma Andrio.
Nas famílias, o problema também se manifesta. Pais têm se surpreendido ao ouvir dos filhos discursos machistas ou anti-LGBTQIA+. “Não é uma conversa que se resolve em uma tarde. É acompanhamento”, explica. A chave está menos em impor autoridade e mais em construir confiança para que o adolescente fale e seja escutado.
O desafio inclui cultivar um olhar crítico sobre modelos masculinos do passado, reconhecendo tanto virtudes quanto falhas de pais e avós, e reforçar narrativas positivas. No Papo de Homem, por exemplo, vídeos que mostram homens em papéis de cuidado têm ajudado a ampliar imaginários. “Pensando em como a internet está construindo a masculinidade, faz sentido disputar esse espaço mostrando referências positivas, homens cuidadores, homens sensíveis, homens presentes. Isso também educa. É parte do cuidado coletivo que precisamos construir”, destaca Andrio.
Essa mudança de sentido é central para o futuro, afirma Andrio, que defende que programas educativos sobre masculinidade cheguem às escolas e até às categorias de base do futebol: Quando vemos um jogador envolvido em estupro ou violência, qual é a responsabilidade do time na formação da masculinidade desse atleta? Houve alguma preocupação em formar homens? Ou só se formou sujeitos com grande técnica, mas sem humanidade?” A resposta, acreditam os especialistas, passa por construir novos espaços, coletivos, afetivos e institucionais, onde meninos e homens possam, enfim, aprender a falar, ouvir e cuidar.