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Comunicação

As relações da publicidade com a ditadura

Durante o período, governo se tornou o maior anunciante do País e o mercado publicitário cresceu, foi censurado e reagiu com a criação do Conar


31 de março de 2014 - 0h00

Refletir a relação e o impacto do golpe militar de 31 de março de 1964, no então incipiente mercado publicitário brasileiro, além de complexa, é uma tarefa interessante para mostrar como se configurou o jogo de poder naquele ambiente em uma indústria que construiu os alicerces para se constituir em uma das maiores do setor no mundo exatamente ao longo dos 21 anos de regime militar. Foram nos 1960 e 1970 que o governo federal, então comandado pelos generais, tornou-se de fato o maior anunciante do País. Afinal, o milagre brasileiro precisava antes de tudo ser bem comunicado.

Ao mesmo tempo, as agências de publicidade naquela época acabaram sendo um grande refúgio para profissionais que eram de esquerda e inimigos do regime — intelectuais, artistas, escritores, arquitetos, jornalistas, entre outras atividades liberais. A censura à propaganda era muito mais branda do que aquela exercida sobre os órgãos de imprensa, mas mesmo assim era sistemática. E foi exatamente como resposta à ameaça de censura prévia que, em 1978, foi criado o Código de Autorregulamentação Publicitária, o embrião do Conar, o órgão criado dois anos depois em resposta às arbitrariedades dos censores e um marco até hoje em termos de autorregulamentação não só no Brasil, mas internacionalmente.

A força da MPM
Dentre as agências da época a que mais teve uma relação estreita com os governos militares foi a MPM. Ironicamente, a empresa criada em 1957, em Porto Alegre, pelo trio de sócios Antonio Mafuz (falecido em 2005), Petrônio Corrêa (morto em 2013) e Luiz Macedo teve como um de seus pilares de crescimento nos primeiros anos de atividade o fato de o último ser sobrinho de João Goulart, o presidente deposto pelos militares. No início dos anos 1960, a agência conquistou a conta da Caixa Econômica Federal e da Eletrobrás exatamente por causa dessa proximidade. Essa relação trouxe sérios problemas à MPM na época do golpe.

Na noite de 31 de março de 1964, Macedo pressentiu que as ligações familiares com o presidente deposto e o fato de a MPM ter feito toda a campanha do “Diga não ao parlamentarismo”, em 1961 — com o famoso jingle “Vamos Jangar”, de Miguel Gustavo —, poderiam trazer problemas. Decidiu ir às pressas buscar proteção em São Borja, sua terra natal. Não teve tempo nem de mandar suspender o anúncio da Eletrobrás que acabara sendo publicado nos principais jornais cariocas no dia 1o de abril. A peça, sobre Sete Quedas, trazia o logo da Eletrobrás e, abaixo, a assinatura: “realização Goulart”.

Os sócios Mafuz, Petrônio e Macedo temiam retaliações. E elas vieram. O anúncio da Eletrobrás, publicado nos jornais cariocas, resultou em um famoso Inquérito Policial Militar (IPM) do novo governo. Os militares queriam saber os motivos que levaram a MPM a publicar o tal anúncio, achando que ele fazia parte de um plano maior de conspiração sem entender que integrava uma programação prévia que as agências costumavam fazer com os veículos. Além disso, queriam saber se o anúncio tinha saído na Última Hora carioca, um jornal pró-Goulart. O inquérito acabou graças à interferência do sogro de Nelson Gomes Leite, ex-diretor da MPM-RJ, um compadre do futuro presidente Costa e Silva.

Ao mesmo tempo que a MPM-RJ enfrentava o IPM, a MPM Porto Alegre abria suas portas para uma velada sindicância militar. Incentivadas por denúncias de algumas agências concorrentes, de que a MPM vivia à custa do dinheiro público gasto por Goulart, a empresa passava por uma devassa. Para pôr fim, definitivamente, às suspeições, Mafuz descobriu que muitos dos homens que tinham acabado de assumir cargos importantes no novo regime haviam estudado com ele no Centro Preparatório de Oficiais da Reserva (CPOR), no quartel de Pelotas, mais de 20 anos antes. Eram amigos de confiança. Muitos, que como ele, eram tenentes e capitães naquele tempo, assumiam agora funções públicas tendo como cartão de apresentação as patentes de coronéis e generais. Um deles, inclusive, chegou a ser candidato à presidência: Mário Andreazza. Com muita conversa e explicação sobre as atividades da MPM, Mafuz conseguiu convencê-los de que aquela sindicância não passava de um mal-entendido.

E foi exatamente essa relação “gaúcha” com a maioria dos generais (eram quase todos do Rio Grande do Sul) um dos motivos que fez com que a MPM conseguisse manter não só o atendimento às contas do governo federal, que já possuía na época de Jango, como conquistar mais clientes públicos nos anos vindouros. Fator importantíssimo para sua consolidação.

Governo só com agências nacionais
Foi nos anos 1960 que as principais lideranças empresariais do setor publicitário criaram um grupo formado inicialmente para participar de algumas concorrências do governo federal. Faziam parte desse consórcio Standard, MPM, Norton, Alcântara Machado, Mauro Salles Publicidade, Denison e, alguns anos depois, também a DPZ. O clube fechado no qual só eram aceitas agências puro-sangue nacionais evoluiu. Ao lado das grandes multinacionais como J. Walter Thompson e McCann-Erickson, essas sete eram as principais agências da publicidade brasileira e começaram, por meio de uma mobilização unificada, ditar as regras do mercado. Com o tempo, elas receberam a alcunha de “Sete Irmãs”.

Uma dessas regras criadas na época era a de que contas públicas só poderiam ser atendidas por agências brasileiras. A prática ganhou força e vigorou até o final dos anos 1990. Chegou a ser chamada durante muito tempo de Lei Macedo, uma referência a Luiz Macedo.

Se anos depois, a indústria da propaganda nacional prosperou e ganhou estabilidade, ela devia muito a essa aliança informal, mas sólida, entre as suas lideranças. Em 1972, a Standard foi comprada pela Ogilvy & Mather e, portanto, deixou de fazer parte do grupo. No entanto, nos bastidores do mercado, o nome Sete Irmãs já tinha se consolidado e continuaria sendo a forma como todos se referiam ao grupo das agências brasileiras mais poderosas das décadas de 1960 e 1970.

A censura
Diferentemente dos veículos de comunicação, que tinham em sua maioria censores dentro de suas sedes para fiscalizar o conteúdo daquilo que produziam, a censura na publicidade durante a ditadura militar era exercida a distância. Caso considerassem determinado filme ou anúncio com conteúdo “ameaçador”, a agência em questão recebia uma ligação ou mesmo uma visita do censor. “Ficávamos preocupados porque muitas vezes os clientes tiravam o corpo fora na hora em que éramos acionados e sobrava para nós fazermos a defesa da campanha questionada”, conta Roberto Duailibi, cofundador da DPZ.

Ele lembra que em 1972 a agência sofreu o único processo judicial por conta da censura. Trata-se da campanha de 15 anos da rede Peg&Pag, composta por anúncios que tinham como tema “Coisas que fazemos quando se tem 15 anos” que eram ilustrados por situações como espiar o buraco da fechadura para ver a empregada trocar de roupa ou dirigir sem habilitação. Poucos dias depois da entrada da campanha no ar, a DPZ foi acionada judicialmente, pois a censura considerou o tom das peças uma incitação à rebeldia. O advogado José Carlos Dias, ex-ministro da Justiça e hoje integrante da Comissão da Verdade, foi o defensor da DPZ no caso.

“Usei como argumento de defesa a importância do humor e arrolei como uma das testemunhas de defesa o humorista Jô Soares que foi a Brasília depor e explicar que nem sempre o que se diz deve ser levado ao pé da letra”, explica o advogado. A DPZ conseguiu vencer a ação.

Em 6 de setembro de 1978, o Projeto de Lei no 40/72, de autoria do senador José Lindoso (Arena-AM), que estabelecia a censura prévia na propaganda, havia sido aprovado no Congresso, após tramitar durante seis anos e figurar por quase dois meses na pauta. No mercado publicitário, a reação foi também bastante contundente. Afinal, se sancionado, o projeto causaria ainda mais dificuldades para se colocar uma campanha no ar. Ele ditava normas para a publicidade incluindo, além da própria censura, que já existia, a exigência de certificado de inspeção de qualidade do produto anunciado, considerava rótulo e embalagem como peças publicitárias e não meramente informativas.

No próprio ano de 1978, em abril, durante o III Congresso Brasileiro de Propaganda, o mercado já estava se preparando para essa ameaça e aprovou o Código de Autorregulamentação Publicitária em resposta a esses e outros projetos que já estavam em tramitação em Brasília e iam no sentido de recrudescer a censura prévia à publicidade. A função do código era simples e direta: zelar pela liberdade de expressão comercial e defender os interesses das partes envolvidas no mercado publicitário, inclusive os do consumidor. No final do mandato do presidente Ernesto Geisel, em 1979, começou a lenta e gradual abertura democrática e o projeto Lindoso foi enterrado de vez. A autorregulamentação da publicidade mostrava-se o caminho mais eficaz nesse cenário e, em 1980, o Conar foi finalmente criado.

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