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Opinião

O ficcional de uma realidade sem graça

Ele é um ex-comediante de 44 anos, um artista que cimentou sua popularidade ao interpretar um personagem de humor que de repente se vê eleito presidente da Ucrânia


5 de abril de 2022 - 9h30

O presidente ucraniano Volodymyr Zelensky. Crédito: Shutterstock

Ele é um ex-comediante de 44 anos, um artista que cimentou sua popularidade ao interpretar um personagem de humor que de repente se vê eleito presidente da Ucrânia.

Agora, em um papel da vida real, onde o espectro da catástrofe é o palco do mundo, o presidente Volodymyr Zelensky tornou-se a personificação singular da resistência da Ucrânia perante o exército russo. “Estamos todos aqui – nossos soldados, os cidadãos de nosso país e eu estamos todos aqui protegendo nossa independência e continuaremos a fazê-lo.” A insistência do presidente em ficar, junto com sua esposa e filhos somada a suas palavras projetaram uma mistura de desafio e desespero crescentes.

Um Zelensky privado de sono se move secretamente entre bunkers na capital, Kiev, enquanto compartilha seu desafio – e, por extensão, o de seu país – com uma audiência global atordoada por meio de selfies em mídias sociais. Quando sai na rua para provar que ainda está em Kiev, ele está com seu smartphone funcionando e olhando para todo mundo como um soldado em tempo de guerra, no campo. Não há como não acreditar que seja uma escolha consciente. Em Zelensky há essa esperança de que ainda é possível defender ostensivamente os valores em que se acredita.

Muitos observadores compararam seu impacto ao de Winston Churchill, o combativo primeiro-ministro britânico que se tornou o rosto, e especialmente a voz, de sua nação em apuros na resistência solitária à Alemanha nazista nos primeiros anos da Segunda Guerra Mundial. Zelensky não possui a mesma proeza retórica que Churchill demonstrou nas mensagens de rádio quando as bombas alemãs caíram sobre Londres. Churchill fez bom uso do rádio e da palavra escrita. Zelensky faz excelente gestão das mídias sociais. Suas observações improvisadas, sem tempo para preparar um longo discurso, aumentam a natureza genuína de suas apresentações e ressoam muito bem com a geração mais jovem.

E aí está o ponto.

Numa época em que o poder de inspirar pode ser tão importante quanto a posse de mísseis ultrassônicos, o caminho de Zelensky para a liderança política parece tê-lo equipado com a capacidade de motivar seu próprio povo e armando-o com o poder de atrair o apoio de grande parte do mundo. Isso não é de agora, vejamos que Zelensky ganhou a primeira temporada da versão ucraniana de Dancing with the Stars em 2006. Lá está ele com o recorde de views muito antes desse conflito ou de sua carreira política.

Neste artigo, fiz questão de sublinhar quatro características que ajudam a explicar seu sucesso midiático.

As mensagens subliminares

Em 1903, um arquiteto chamado Vladislav Gorodetsky deu os retoques finais a um luxuoso prédio no centro da capital ucraniana, Kiev. Dizer que o edifício é incomum seria um grande eufemismo. O edifício, homônimo do criador, funde os estilos Beaux-Arts e Art Nouveau com uma linha de telhado e fachada expondo uma coleção verdadeiramente bizarra de grotesca: fileiras de sapos que patrulham o telhado ao lado de sereias que se montam em peixes contorcidos, um elefante se projeta da parede do edifício, cabeças de veados e rinocerontes emergem do topo de colunas coríntias.

Ao empregar o edifício como pano de fundo em mais de sete vídeos, Zelensky estava apontando para o patrimônio cultural que hoje está em jogo. Os museus da Ucrânia estão lutando contra o avanço russo, tentando encontrar armazenamento seguro para milhares de objetos. O ministro da Cultura da Ucrânia formalizou um pedido à Unesco de que retirasse a Rússia de sua participação na organização, presumo, por violar a Convenção de Haia para a Proteção de Bens Culturais em caso de conflito armado. Além de tirar vidas, a destruição do patrimônio cultural é uma forma de eliminar as narrativas de uma cultura. O mais interessante, é que sem falar uma palavra sobre esse tema, milhares de especialistas se mobilizaram preocupados com a eventual destruição do prédio. Isso mesmo, Zelensky explora com genialidade um recurso que você marqueteiro e/ou publicitário conhece bem: os tão engajadores vídeos cheios de easter eggs.

A autenticidade da mensagem

Em vídeo de 25 de fevereiro com postes de luz piscando ao fundo, o presidente fala diretamente para a câmera sem qualquer parafernália oficial à vista. A certa altura, o primeiro-ministro ucraniano Denys Shmyhal exibe o seu próprio telefone para destacar a data e horário da filmagem. Não pareceu gratuito que o vídeo quando editado não corta o início da gravação trêmula, com sujeira na lente e até com alguns erros de pronúncia cirurgicamente evidentes para quem está nervoso ou inseguro. Pode parecer um paradoxo, mas o amadorismo do material é feito com um profissionalismo tão único, que sensibiliza até os mais desconfiados.

A coautoria do público

Uma terceira razão pela qual os vídeos de Zelensky são tão eficazes tem relação com a forma como eles se conectaram com os espectadores nas mídias sociais.

A mídia social amplifica a visibilidade de uma mensagem quando os usuários se sentem coautores de um conteúdo. O ato mágico que formaliza esse endosso chama-se compartilhamento. Alguns corajosos chegam a cravar que um “share” equivale a nove “likes”. Nunca entendi a lógica estatística da afirmação, mas ela ilustra realmente a métrica mais relevante das redes – o compartilhamento orgânico.

Muitos vídeos de Zelensky enfatizando a unidade de seu povo e um senso de solidariedade criaram uma conexão com muitas das pessoas que viram seus vídeos. Mas o detalhe inovador não é o tom convincente e direto, mas seu clamor para que as pessoas divulguem os vídeos. Para um influenciador seria comum, mas políticos não usam desse artifício nem em campanhas – talvez por orgulho? Dada a completa vulnerabilidade dos sistemas de telecomunicações na Ucrânia, o incentivo pelo compartilhamento é mais que oportuno e efetivo.

O imediatismo da mensagem

“Preciso de munição, não de uma carona”, disse Zelensky às autoridades americanas que se ofereceram para tirá-lo do país. As plataformas de mídia social têm tudo a ver com alcance e engajamento e pesquisas comprovam que mensagens que parecem urgentes são mais propensas a provocar uma resposta emocional, aumentando o número de pessoas comentando e repercutindo a postagem. Ter a frequência recorrente e materializar as datas e horários dos vídeos geram comoção e curiosidade em procurar os outros vídeos que complementam a narrativa numa linha do tempo: explora-se a angústia das pessoas de estarem sempre em dia com o último post, terem visto o post anterior àquele e acompanharem de hora em hora para ver o que vem depois.

Como resultado, suas mensagens foram excepcionalmente potentes para catalisar a opinião pública. O que fica evidente na figura de Zelensky é que seu personagem da ficção se tornou realidade por meio de um processo de construção de uma imagem estrategicamente estruturada, seguindo um arco narrativo minucioso de um protagonista exposto pelo uso competente das redes sociais. Agora, se ele está certo ou se vai vencer essa guerra, já é outra conversa.

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