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A calma é revolucionária

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Opinião

A calma é revolucionária

2019 pareceu, desde o início, estar calcado em uma charge do Benett, em que um enorme cometa chamado decepção ruma para dizimar pequenas expectativas


7 de janeiro de 2020 - 11h38

(Crédito: Gremlin/ iStock)

(Pequeno prólogo sem grandes conexões)

“O homem com teorias assertivas não estremece, não balança, ele vai. A segurança forjada em previsões sobre um capítulo da história que ninguém conhece. Carregado de certezas, cercado de múltiplos eus nas redes sociais, tudo é reforço, tudo é escudo. Ele sobe no palco com projetor de slides e mira a laser, aponta a direção, não esmorece. A persona moderna, trabalhada em quotes, que nada teme, nem permite espaço para dúvidas. Um ser sólido, um coach de si mesmo. Todos os dias, em frente ao espelho, ele mira, admira, mas não toca a imagem refletida. Um gesto pode ser o início de uma desconstrução que — ele sabe — está à espreita.”

Parei de escrever para valorizar as minhas dúvidas, recuei, vi de fora, olhei para dentro. Saltei do idealizado de tudo que já tinha escrito para o real sem escalas, queda livre. Um ano brutal, duro, com o noticiário a consumir as entranhas. Pessoas queridas saindo de cena na agência, fogo amigo. Na rota da vida real, não tem Waze. Não há nada que nos avise sobre os descaminhos, os acidentes no percurso ou sobre a possibilidade de um retorno. 2019 pareceu, desde o início, estar calcado em uma charge do Benett, em que um enorme cometa chamado decepção ruma para dizimar pequenas expectativas. Poderia não falar sobre isso, seria mais seguro manter uma postura infalível, mas eu me cansei desses personagens.

Eu sou daltônico. Enxergo as cores extremas, perco muitas nuances de transição. E isso, diversas vezes, respingou em meus textos, atitudes e posicionamentos. Gostar muito, desgostar na mesma proporção. Aquela zona central onde reside o espaço do diálogo, o ponto de equilíbrio, as tais camadas de cinzas, tudo ignorado quando a raiva batia. Agora, cercado de discursos de ódio por todos os lados, vejo claramente as perdas. Decidi voltar a escrever como um daltônico que busca as cores de transição, como um cara que precisa de um pouco de docilidade nestes tempos brutos. Não deixarei a acidez e a contundência de lado, mas vou usá-las com parcimônia.

Essa não é uma decisão solitária. Ela nasce do olhar curioso e, por vezes, assustado das minhas filhas para esse mundo. Renasce do mantra repetido pela minha esposa de que é preciso mudar o foco. “De todas as atitudes que tomei baseadas no ódio, me arrependo”, disse Emicida. Estou com ele. AmarElo é outro ponto de conexão com o que me importa. Ao contrário desse governo, tenho fé na música e no poder da cultura. AmarElo foi uma experiência religiosa, portanto. Uma reza cantada a desviar o cometa decepção, fluoxetina musical, esperança. As lindas pequenas expectativas sobrevivem ao redor.

Retorno porque os idiotas estão cheios de razão na Terra Plana. E eu estou no embalo do Bertrand Russel: quero as dúvidas. Escrever é se expor, mas já paguei o preço e trago novos boletos. Troco cada certeza entreouvida pela calma que me faltava ao redigir. Porque, como disse o mesmo Emicida em mais outro petardo sintético: a calma é revolucionária.

(Epílogo sem grandes pretensões)

“Na solidão do espelho, o homem sabe que tudo é imagem. E sem ninguém a observar, ele toca o reflexo. A desconstrução não está mais à espreita. Agora, ela é um fato, é ressignificação.”

*Crédito da foto no topo: Reprodução

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