As verdades permanecem atrás das formas
Temos usado muito nosso direito à palavra. Nosso direito de dizer o que pensamos, mesmo que sem filtro, sem aprofundamento, sem troca, sem consideração ao direito à palavra do outro
Temos usado muito nosso direito à palavra. Nosso direito de dizer o que pensamos, mesmo que sem filtro, sem aprofundamento, sem troca, sem consideração ao direito à palavra do outro
Estamos tão apaixonados pelo ato de manifestar que temos nos afastado das verdades que desejamos, de alguma forma, representar. Temos usado muito nosso direito à palavra. Nosso direito de dizer o que pensamos, mesmo que sem filtro, sem aprofundamento, sem troca, sem consideração ao direito à palavra do outro.
Maravilhoso mundo onde não faltam espaço de manifestação nem liberdade, o mundo das nossas timelines, que às vezes alcança distâncias um pouco maiores que nossa restrita realidade cotidiana e, ainda, infinitamente menores que a realidade humana.
Às vezes penso que não estamos preparados para viver a beleza da complexidade, a dádiva de enxergar camadas no lugar de pontas, a consciência de que o meio é uma perspectiva, não um lugar, e de que o consenso pode ser um desrespeito à diferença.
Talvez, lá atrás, em um tempo hoje perdido, quando adotamos o pensamento binário, não estivéssemos fazendo uma escolha, talvez estivéssemos fazendo apenas o que dávamos conta e, também talvez, ainda não tenhamos condições de dar conta de muito mais do que isso.
Isso explicaria por que estamos nos ocupando mais em repetir do que em elaborar. Elaborar é complexo e pede que usemos nossos olhos e ouvidos ao mesmo tempo que usamos nossa voz. Elaborar pede perspectivas, várias, todas que conseguirmos e que existem em nós mesmos e no outro.
É curioso como nosso desejo por transformar o mundo está sempre sendo ameaçado pela nossa dificuldade em aceitar que o mundo nunca será um lugar definido apenas por um único conjunto de percepções, valores, crenças, desejos. Nunca. No máximo vamos conseguir alcançar uma noção única de respeito.
Hoje, tomei uma nova decisão. Quero me desapaixonar por mim mesma, me descolar do narcisismo natural que me habita, te habita, nos envolve. Ah nossa voz! Andamos tão apaixonados por ouví-la! Apaixonados a ponto de esquecer que ela nada mais é além de veículo para pensamentos que deixamos de possuir no nano segundo depois que ela se manifesta.
Hoje vou me desapaixonar dando lugar ao que me apaixona e inspira na mesma proporção que me tumultua: Andre Gide, em seu Tratado do Narciso, publicado pela primeira vez em 1891, reproduzi- do aqui por meio de uma simples nota de rodapé:
“As verdades permanecem atrás das formas — Símbolos. Todo fenômeno é o Símbolo de uma Verdade. Seu único dever é manifestá-la. Seu único pecado: preferir-se.
Vivemos para manifestar. As regras da moral e da estética são as mesmas: toda obra que não manifeste é inútil e, por isso mesmo, má. Todo homem que não manifeste é inútil e mau. (Elevando-se um pouco, ver-se-á que todos manifestam — mas somente depois se deve reconhecer.) Todo representante da Ideia tende a preferir-se à Ideia que ele manifesta. Preferir-se — eis aí a falta. O artista, o sábio, não deve preferir-se à Verdade que ele quer dizer: eis toda a sua moral; nem a palavra, nem a frase, à Ideia que querem mostrar: eu qua- se diria que nisso reside toda a estética.
E não pretendo que essa teoria seja nova; as doutrinas da renúncia não pregam outra coisa. A questão moral, para o artista, não é que a Ideia, que ele manifesta, seja mais ou menos moral e útil a um grande número; a questão é que ele a manifeste bem. — Pois tudo deve ser manifestado, mesmo as coisas mais funestas: “Ai daquele pelo qual o escândalo vem”, mas “É preciso que o escândalo venha”. — O artista e o homem verdadeiramente homem, que vive por alguma coisa, deve ter feito antes o sacrifício de si mesmo. Toda a sua vida nada mais é do que um encaminhamento para isso.
E agora, o que manifestar? — Isso se aprende no silêncio”.
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