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Opinião

Geladeira que gela, fogão que esquenta

Vamos criando termos, adjetivos, denominações, para dizer que aquilo que se faz não é publicidade e o resultado é uma dificuldade de achar um diferencial do produto em si


4 de setembro de 2023 - 6h00

Como era trabalhar na F/Nazca? Essa questão ainda surge algumas vezes ao meu redor. Ela carrega curiosidade, um tico de lamento e uma sensação de que a agência continua a existir, mesmo não estando mais ali. É como uma lembrança vívida que toma corpo e volta para a Av. República do Líbano, 253. E nos carrega junto para aquela temperatura interna de criogenia a contrastar com o calor do parque, logo ali, defronte. Tomado por essas recordações, eu me pego buscando imagens e frases daqueles tempos, porque havia ensinamentos que eram proferidos como se simples frases fossem. “Outdoor é menor do que anúncio de revista” era uma delas. Eu voltava para a minha mesa como quem encontrou o Mestre dos Magos e pensava “O que ele quis dizer com isso?”.

Por sorte, o Mestre dos Magos não desaparecia e ainda tínhamos a oferta de uma segunda pergunta, que invariavelmente era a repetição do pensamento “O que você quis dizer com isso?”. E aí, o Fabio (Fernandes) falava sobre o tempo de leitura que um outdoor entrega ao consumidor. E insistia que a gente precisava ser mais sucinto.

Quando o assunto eram os spots de rádio, ele sempre cravava: “Não me venha com spot que parece ser o diálogo entre dois locutores!”. E a gente entendia que era necessário criar toda uma atmosfera para mostrar ao ouvinte que aquela peça publicitária era diferente da programação da rádio. Não por acaso, muitos spots viraram filmes depois.

Há uma dessas frases que tenho lembrado – e pensado – bastante: “Não podemos criar campanhas sobre a geladeira que gela e o fogão que esquenta”. Essa máxima costumava surgir no meio de um trabalho importante. Não bastasse a entrega para dali uns dias, a gente tinha que decifrar esse enigma no meio do caminho. Já que fica menos curioso quem é cara de pau, eu pedi uma explicação que não fosse ao estilo Caverna do Dragão. Então, ele discorreu sobre a importância de encontrar um diferencial emocional que não fosse óbvio, que fizesse o consumidor pensar que já tinha escutado aquilo em algum lugar, que bebesse da cultura popular das ruas e do entretenimento para fazer da entrega algo inédito, mas, ainda assim, de fácil identificação e que, claro, significasse muito mais do que a geladeira que gela. E assim nasceram tantas campanhas que o consumidor se recorda até os dias de hoje. O “Formiguinhas”, da Philco, nada mais é do que um comercial que vende um aparelho de som de alta potência enquanto diverte o consumidor. Foi Leão de Ouro e fez parte da cultura brasileira porque não há uma dissonância entre vender e divertir o público. Há, sim, uma confluência. Confluência essa que caiu um pouco em desuso nos últimos tempos. Talvez pelo nosso afã de fugir da palavra vender, talvez por acharmos que a palavra publicidade ficou feia – ou menos importante? – diante da palavra entretenimento.

Assim, vamos criando novos termos, novos adjetivos, novas denominações, todo um esforço para dizer que aquilo que se faz não é publicidade. É outra coisa, esconjuro! E o que advém disso, com relativa frequência, é uma dificuldade de achar um diferencial do produto por aquilo que ele faz. Porque soa simplório apenas vender; logo, precisamos nos imbuir de um espírito maior. Aí, é mais fácil encontrar uma ação de um aspirador de pó que “eliminou” a rinite alérgica, por um dia, em um vilarejo do interior (tudo com muitos dados), do que uma peça publicitária que venda criativamente aquilo que o aspirador de pó faz em sua forma mais simples. E há de se ter equilíbrio.

Não está aqui a defesa de que não devemos buscar esse espírito maior. Tampouco trata-se de uma fuga da busca por um propósito que esteja conectado com a marca. Em um mundo em que o consumidor cobrará cada vez mais responsabilidades das marcas (porque está cada vez mais descrente dos governos) é preciso cavar fundo para fugir do propósito de superfície. Porém, devemos estar sempre atentos para não nos distanciarmos demasiado do que aquela marca, produto ou serviço faz. Porque o consumidor e a consumidora nunca acompanham aqueles keynotes e PPTs que tomamos como verdades absolutas em reuniões. Eles simplesmente têm coisas mais importantes para lembrar. É nossa tarefa facilitar a lembrança de marca numa cabeça totalmente tomada de assuntos.

Eu não entendi muito o porquê de um dos GPs de Filme de Cannes ter sido aquele comercial da Apple. Não me encantou, mas isso é subjetivo. Penso que talvez o júri tenha decidido dar um recado sobre o produto como o centro da mensagem e premiar a volta do humor, esse assunto esquecido porque as marcas – quem sabe? – têm se levado a sério demais. O GP de Outdoor pareceu rumar no mesmo sentido. O GP de Mobile é tão simples, mas tão simples, que é difícil de chegar à ideia. Porque nos dias de hoje, parece que, para ser bom, tem que ser complicado. E para ser grandioso, a regra é conectar a Nasa a um fornecedor desconhecido e mexer em quatro satélites. É como a confusão que sempre se dá com as produções caras que dizem quase nada: “Qual é a ideia aí mesmo?”.

Faz falta, de vez em quando, “o fogão que esquenta” como mensagem. Melhor dizendo, faz falta uma panela de feijão temperado com alho, aquela folha de louro, umas carnes para dar gosto, uma panela que vai em cima do fogão que esquenta toda essa malemolência. Assim como faz falta aquela propaganda sem medo de ser propaganda e com menos medo ainda de ser brasileira: “Histórias para morar”, do Quinto Andar, “Elis Regina e Maria Rita”, da VW, e uma da Caixa Econômica Federal, que está rolando, com redação do Rynaldo (Gondim), são algumas recentes que me vêm à cabeça. Quando um cartum circula tirando onda do fato de que na hora que as marcas chegam, a graça do meme desaparece, pode ser uma dica para a gente variar um pouco a receita. Pode ser que seja. Ou não…

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