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No futuro seremos todos cancelados?

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Opinião

No futuro seremos todos cancelados?

Quem oferece fórmulas prontas sobre como lidar com cancelamentos na era exponencial e em tempo real das redes sociais está minimizando o fato de que grande parte do trabalho se dá no transcorrer da jornada.


16 de dezembro de 2021 - 17h18

Se na antológica previsão de Warhol o futuro reservaria a todos 15 minutos de fama, a notoriedade em tempos ultraconectados, ainda que efêmera, pode incluir doses insuportáveis e, muitas vezes, injustificáveis de humilhação pública. Essa é a tese do documentário “15 Minutes of Shame”, coproduzido por Mônica Levinsky, paciente zero do cancelamento como o entendemos hoje, em que os apedrejamentos se dão na praça pública da internet, o ódio é destilado sem filtro e manipulado com precisão cirúrgica nas redes sociais. No filme, Mônica e seu parceiro de empreitada, Max Joseph, entrevistam historiadores, sociólogos, jornalistas, neurocientistas e personagens “cancelados” por distintas razões, buscando uma leitura contemporânea do “public shaming”.

(Créditos: Divulgação)

É doloroso ouvir Lewinksy rememorando a vertiginosa experiência de, aos 24 anos, ser usada como mera ferramenta para atingir o então homem mais poderoso do mundo, e no processo se tornar o centro de um fenômeno sem precedentes, para o qual não havia manual de crise. É assustador ver estórias de vidas viradas do avesso depois de equívocos, cometidos por seus protagonistas ou terceiros, se tornarem objeto de escrutínio público. Ainda que todos os casos ilustrativos tenham ocorrido nos EUA, o embasamento teórico e conceitual que alinhava a narrativa permite insights universais sobre as motivações e consequências dessa prática, tão humana quanto atemporal. Merecedora inclusive de uma expressão em alemão, muito precisa na descrição desse prazer quase sádico de rir da desgraça alheia: Schadenfreuden, soma das palavras shaden (dano) e freuden (alegria). No entanto, em se tratando de cancelamentos, com consequências muito mais nefastas do que o mero gargalhar diante de uma “videocassetada”.

Logo ao princípio o filme resgata o histórico da ritualização dos processos de humilhação pública. Entre os mais antigos, e cujo termo se converteria em sinônimo de desterro social, está o ostracismo, punição praticada em Atenas no século V a.C.. Os condenados por atentar contra a ordem e liberdade pública eram banidos ou exilados do convívio na Polis por meio de votação, cujas cédulas – os estudiosos divergem se em forma cacos de cerâmica ou conchas de ostras – eram chamadas de ostrakhismós.

Mais adiante, uma neurologista discorre sobre o efeito neuroquímico da dopamina que sentimos ao testemunhar um transgressor ser punido ou humilhado. Uma explicação científica às manifestações quase sádicas do prazer que costuma dominar as turbas, estejam elas testemunhando a execração/execução pública de um herege, estejam elas atirando pedras em forma de tweets, posts, likes e toda sorte de manifestação on-line.

Conforme avançamos do analógico ao digital, vemos não só uma atualização dos modos e metodologias de humilhação pública, mas uma queda vertiginosa dos níveis de civilidade, uma desinibição on-line que, como indica uma das entrevistadas, a especialista forense em psicologia cibernética Mary Aken, implica em redução considerável de empatia e aumento de narcisismo. Uma versão de darwinismo social na qual os mais vocais e violentos sobreviverão, e que tende a colocar a humanidade numa sinuca de bico, como bem resumiu o sociobiologista Edward O. Wilson, ao dizer que temos emoções Paleolíticas, instituições medievais e tecnologia divina.

Foi justamente o progresso tecnológico permitiu a ampliação do shaming de um evento paroquial a um muitas vezes de alcance global, através de um ecossistema que monetiza o cancelamento desde a criação da mídia impressa. A crescente “tabloidização” do conteúdo editorial, que a partir dos anos 70 se filtrou a outros meios e formatos de comunicação, notadamente a TV aberta, ajudaram a potencializar o fenômeno, que assume um caráter ainda mais vil quando o alvo é uma mulher.

Com mais de 20 anos de carreira, desconfio quando vejo vendedores de soluções de prateleira para as chamadas crises de reputação. Evidentemente que existem premissas básicas da disciplina de relações-públicas que visam melhor preparar a musculatura de personalidades e corporações para eventuais golpes reputacionais. E há muito conteúdo sério e metodológico, em meio a miríade de palestras e publicações de indisfarçável caráter autopromocional, que oferecem aproximação teórica e exemplos concretos sobre gestão de crises de imagem. Mas, a meu ver, quem oferece fórmulas prontas sobre como lidar com cancelamentos na era exponencial e em tempo real das redes sociais está minimizando o fato de que grande parte do trabalho se dá no transcorrer da jornada. Pois é fundamental uma avaliação e conciliação entre a escuta interna dos diretamente envolvidos e afetados pelo cancelamento, e a escuta social do clamor público.

O tempo noticioso e a urgência implacável do julgamento on-line nunca convergem com o tempo existencial necessário para a real sintetização/processamento de uma crise. Que dirá para uma resposta conscienciosa e reflexiva que ofereça algo minimamente útil ao debate público. A virtualidade e o modelo de remuneração à base de clickbaits das plataformas online estimulam a desumanização dos personagens protagonistas desses enredos. No entanto, na condição de consultora de comunicação e relações-públicas, fui testemunha do dano avassalador causado a quem se destina tanto ódio e recriminação, num case que virou sinônimo de cancelamento em escala nacional em 2021. E vi como uma mesma estória, com o transcorrer do tempo, deixou de ser objeto preferencial de intolerância e julgamento taxativos, para ser interpretada sob lentes mais empáticas por parte da audiência. Não arrisco teorizar sobre as pulsões e nuances por trás dessa evolução de leitura, mas acredito ser fundamental sofisticar o raciocínio sobre as premissas de um cancelamento, pois a popularização do tema em nada banaliza seus efeitos nefastos no curto e longo prazo. Como profissionais de comunicação, temos o dever ético de dar certo freio de arrumação e advogar em prol de respostas menos imediatistas e mais sólidas a essas crises, capazes de contribuir para a reflexão e o letramento midiático quanto as dinâmicas que se constroem na realidade paralela da virtualidade. Em tempos de metaverso, é evidentemente necessário ponderar o peso e reconhecer a influência do que se passa na imaterialidade das redes, porém sem lhe atribuir o poder de ditar nossa conduta na vida real.

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