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O copo meio vazio de criatividade

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Opinião

O copo meio vazio de criatividade

Mesmo com tanto revés por aí, tem gente enchendo o copo de ideias e ações, velejando o mar das mudanças, trazendo novas soluções para os problemas que conhecemos e para os que nem percebemos ainda


10 de outubro de 2016 - 13h00

Acho que foi num domingo à noite, no fim do encontro semanal da família, bem na hora do cafezinho. Entre um noticiário esportivo e outro, reconheci na tela o rosto do Bob Wollheim, do Grupo ABC, num painel de entrevistas. Nos poucos segundos em que consegui ouvir o que falava, ele analisava o astral da economia usando a metáfora do copo — as pessoas tendem a olhar somente a metade vazia, lamentando insistentemente nossas perdas; enquanto isso, o movimento dos empreendedores e suas startups está bombando na outra metade, passando quase despercebido.

É aquele mesmo debate sobre mentalidade que trago para a mesa toda hora: mesmo com tanto revés por aí, tem gente enchendo o copo de ideias e ações, velejando no mar das mudanças, trazendo novas soluções para os problemas que conhecemos e para os que nem percebemos ainda. Eu não precisava ver o resto do debate. Senti-me como aqueles personagens de filme europeu, vendo rostos conhecidos em todas as telas da cidade, nos bares, nas vitrines, recebendo mensagens diretas, pessoais, vendo sinais por todo canto. Valeu, Bob.

O risco como fator crítico tem importância cada vez maior em nossa cultura de negócios. Não deveria ser um problema para indústrias criativas, mas as coisas mudam quando as coisas mudam, não é mesmo? Por natureza, os negócios criativos florescem naquela linha minúscula que separa o copo cheio do copo vazio. A criatividade encontra seu melhor terreno ali, onde as coisas deixam de ser problemas e tornam-se soluções. No entanto, quando se conquista o caminho do fluxo criativo de alguma forma, é difícil deixar aquele espaço de “desconforto controlado”, tão produtivo quanto delicado. Principalmente quando se construiu sistemas de negócios inteiros em volta deles.

Criativos bem-sucedidos têm lá as suas mandingas, não gostam de trocar as regras. Mas vem a vida mudando sem parar, trazendo as surpresas mais inesperadas, nos exigindo outra solução criativa onde a solução de sempre já não funciona. Bom momento para fazer do risco um aliado, reativar o jogo e sentir de novo o frio na barriga.

Em uma apresentação no TED, Sting conta como o fluxo criativo, que alimentou sua carreira por mais de 20 anos, um dia parou sem dar aviso prévio. Desde o final dos anos 1970 com o Police e por anos de carreira solo, Sting era um canal de hits anuais, compondo praticamente todos os dias. Até que alguma coisa mudou e suas músicas simplesmente não aconteciam mais. Talvez ele tivesse esgotado a fonte, talvez o mundo tivesse mudado.

Em um momento ele fala sobre um possível esgotamento da exposição íntima, profunda e contínua, que sua arte exige — o jogo do risco permanente. Seu vazio, felizmente, não durou para sempre, mas serviu para alimentar o talento incomum com renovadas doses de chance. Criatividade tem os seus paradoxos.

Nestes anos todos tentando entender este negócio de comunicação digital, aprendi que coisas geniais acontecem na medida em que os criativos vão desenhando a própria linha divisória entre o que é e o que deveria ser. Quando o risco deixa de ser um fator a ser evitado, quando passa a fazer parte da receita. Na verdade, não acredito que exista outra maneira. Também aprendi que criar em rede é muito poderoso e divertido. Abrir o processo criativo para o mundo pode ser um risco danado, mas o risco é a mãe da ideia. Abrir ideias e expor fragilidades em criações compartilhadas ajuda todo mundo a chegar em lugares totalmente inesperados. Afinal, quem liga para o risco de desperdiçar ideias boas, de perder a autoria, de relaxar o foco, quando tudo está fluindo?

Com o tempo, passei a olhar a metade vazia do copo como o espaço potencial. O lugar do indefinido, onde o valor e a magia estão escondidos. A metade onde mora o possível.

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