Sobre shifting, agências e terapia
Se você está insatisfeito com a realidade em que vive, imagina descobrir que pode mudar para uma melhors em esforço? Agora imagina que, além de mudar, você também pode criar a sua própria realidade
Se você está insatisfeito com a realidade em que vive, imagina descobrir que pode mudar para uma melhors em esforço? Agora imagina que, além de mudar, você também pode criar a sua própria realidade
Um problema só passa a ser um problema quando você reconhece que ele existe. Escutei isso na minha primeira sessão de terapia e nunca mais saiu da cabeça. Mas já chego no problema. Deixa só fazer uma pequena pausa para o multiverso.
A teoria de que existem muitos universos ou realidades ao mesmo tempo não é nova. Está nas obras de Edgar Allan Poe, Jorge Luis Borges e no brilhante Versões de Mim, do Luis Fernando Verissimo, no qual um homem entra em um bar e encontra diferentes versões dele mesmo contando como teria sido sua vida se tivesse tomado decisões diferentes
E, claro, tem a Marvel que popularizou de vez o conceito (vide Aranhaverso) abrindo caminho para filmes, como Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo.
Falo de multiverso, mas só para chegar aqui: no shifting. Descobri esse universo despretensiosamente com um amigo comentando sobre um episódio do podcast Escafandro. O shifting é uma prática na qual as pessoas supostamente conseguem mudar sua consciência de um universo/realidade para outro. (Lembra do multiverso? O princípio é o mesmo). O termo vem de “shifting realities”. A prática existe há algum tempo, mas ganhou força com o TikTok durante a pandemia. O que faz todo o sentido. Na pandemia, presos em casa, o que todo mundo mais queria era escapar para uma realidade melhor, lembra?
Vídeos ensinando como fazer o shifting têm milhões de visualizações e centenas de comentários. A maioria de adolescentes. O que também faz sentido. Adolescentes são insatisfeitos por natureza. Rebeldes. Brigam com o status quo, com os pais, com a aparência. E se você está insatisfeito com a realidade em que vive, imagina descobrir que pode mudar para uma melhor sem esforço?
Agora imagina que, além de mudar, você também pode criar a sua própria realidade. Sim, você é orientado a fazer um roteiro detalhando coisas da realidade desejada para onde quer “shiftar”. Pode ser o quinto Beatle. Um(a) dono(a) de agência que faz da Peggy Olson a primeira diretora de criação mulher no universo de Mad Men. A pessoa que inventa a fórmula para erradicar a fome no mundo. A imaginação é o limite. Mas o que a maioria das pessoas faz mesmo é viajar para Hogwarts e ser a melhor amiga da Hermione Granger ou namorar o Draco Malfoy.
O problema é que, às vezes, a realidade alternativa é tão melhor que as pessoas não têm vontade de voltar. É o tal do “permashifting”. Basicamente, seria desistir do seu “corpo físico” nesta realidade e ficar de vez na outra. E se você está acompanhando, então, sim, um outro nome para isso poderia ser suicídio.
Mas aqui o termo é “respawn”. Ele vem dos games e se refere ao momento em que o personagem renasce com outras características ou em outro tempo e espaço. Vídeos ensinando o respawn também têm centenas de milhares de views. De novo, na maioria, vistos por adolescentes, para quem tudo pode parecer inadequado e incômodo. De repente, surge uma saída mágica. Assustador, não?
É aqui que entram agências. Muitas agências, como adolescentes, também andam apelando para o shifting.
Ao invés de enfrentar o problema — de modelo, de remuneração, de relevância -, preferem mudar para uma realidade alternativa. Dizem que não são agências. Juram que não fazem o que fazem. Inventam uma realidade onde são quem gostariam de ser. Como se a mudança de semântica pudesse também mudar a realidade.
Mas um problema, como ensinou meu analista, só passa a ser um problema quando você reconhece que ele existe. E incomoda. E você precisa fazer alguma coisa para resolvê-lo.
O processo não é fácil e o divã não costuma ser um lugar cômodo. Mas negar a realidade nunca foi a solução. Pelo menos, não nesta realidade.
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