Pyr Marcondes
19 de junho de 2018 - 8h27
Faz tempo cozinho nestes miolos que um dia a terra há de comer a fome de escrever sobre a ambiguidade histórica pela qual passa hoje o Sillicon Valley. Seu atual turning point.
O artigo que cito lá embaixo deste texto, publicado na Fast Company, além desta entrevista de Kara Swisher, rainha fundadora do Recode, em parceria com o possivelmente melhor repórter/editor tech do mundo, Peter Kafka, todos defendendo o mesmo ponto que me incomoda faz tempo no Vale, cutucaram o tantinho que faltava para eu deixar apenas de pensar no assunto e vomitar aqui minhas usuais asneiras sobre as coisas que rodeiam nossos negócios. Neste caso, as idiossincrasias éticas e empresariais do Vale do Silício.
Destaco que não sou nenhum expert em Sillicon Valley. Visitei lá só três vezes. Fiz cursinho na Singularity, fiz selfie nos pontos turísticos corporativos que todo mundo visita, estive no Google e Facebook, falei com dezenas de startups e empreendedores, como muita gente faz, entrevistei professores universitários e empresários (isso nem todo mundo faz), troquei ideias com investidores (idem). O usual, com um pouquinho de não tão usual assim. Esse é meu MBA no assunto.
Ocorre que me foi dado pelo destino a tarefa profissional de ter que ler e me informar recorrente e profundamente sobre nossa indústria, o que me transformou num monstro devorador de informação, estudos, análises e reflexões sobre os destinos digitais do Planeta. E isso passa, inevitavelmente, pelo Vale. Porque lá é o vértice histórico das maiores transformações digitais de que se tem notícia.
Quem já foi lá certamente concorda comigo, tem algo diferente no ar. Ou na água. Algo que só tem lá.
Alguém pode dizer, bom, grande coisa, o fantástico paõzinho da padoca da esquina da minha casa só tem lá também. So what?
Poizé, é que o pãozinho tecnológico do Vale vem transformando o mundo há décadas, algo que o pãozinho da sua padaria do bairro não faz. O que é bom e louvável.
Só que agora deu uma desandada de fazer gosto, ficando evidente que os jovens e iconoclastas empreendedores locais se transformaram hoje numa bomba armada, cuja a ânsia por disromper tudo e qualquer coisa indiscriminadamente, bem como o isolamento geográfico, cultural e intelectual do Vale, tem o potencial de transformar o que poderia ficar apenas sendo genialidade, em algo completamente oposto, que é a destruição de valores e conquistas humanas que eu, pelo menos, estou zero a fim de abir mão.
O case Facebook e Cambridge Analitca é a ponta do iceberg, mas tem muito mais.
A matéria da Fast Company, cujo título é “It´s clear to everyone that Silicon Valley has to change except the people who live there”, faz uma listinha das mais recentes pisadas de bola do Vale: “It’s hard to miss these days. Social media apps like Facebook, Twitter, and YouTube are harming democracies; autonomous vehicles from Tesla and Uber have killed people; and Theranos has been charged by the SEC with a massive fraud that put patients at risk due to sham blood-testing science”.
Já a entrevista de Kara e Kafka aborda temas ligados a responsabilidade ética ignorada olimpicamente pelos gestores e executivos das grandes companhias de tecnologia do Vale, como se tecnologia não convivesse com o mundo lá fora e com seus fundamentos sociais mais básicos.
Por exigência do Governo norte-americano, toda grande plataforma tecnológica do Vale tem que manter aberta o que eles chamam de “back door”. Trata-se de uma “porta” tecnologicamente aberta para a verificação de dados capturados por essas companhias sobre cada um de nós em todo o mundo. Isso é um protocolo.
Para essas empresas, trata-se de um protocolo tecnológico. Operacional. Tipo, o preço razoável a pagar por sua existência e seus negócios.
Para o Governo norte-americano trata-se de um protocolo de segurança. Segurança nacional.
Para nós, simples mortais, trata-se de invasão de privacidade, algo com que nenhuma dessas companhias, de verdade, se preocupou até que Cabridge Analitca tivesse explodido.
Esperamos que os novos códigos de controle de dados, como o GDPR europeu, venham a nos proteger. Só que não.
Duvido que códigos legais tenham o poder de cercear o controle tecnológico que essas companhias têm do nosso comportamento e da nossa vida.
Mas não são só os dados.
Na cabecinha tecnológica dos geniais (não estou sendo irônico não, eles são geniais mesmo) empreendedores e empresários do Vale, tudo vale. Desde que seja inovador e traga um mínimo de perspectiva de escala e incremento dos investimentos feitos pelos acionistas. Nem o céu é o limite.
Uma brasileira amiga minha que mora no Vale há muitos anos, a Natasha Castro, da empresa internacional de eventos Wish, me relata: “A vida aqui no Vale é de fato única. O rapaz que esta trabalhando na obra aqui do lado da minha casa vai fazer um curso de código de 28 dias, que leva a uma bolsa integral com moradia, alimentação e computadores Apple 24 horas 7 dias por semana por 3 anos. Mas ninguém aqui suporta a pressão da competitividade. Os índices de suicídio de adolescentes em idade pré universitária são altos. 8 crianças se jogaram na linha do trem em espaço de 1,5 ou 2 anos”, conta ela.
Não é um ambiente hostil, mas é um mundo sob a pressão da busca por sucesso, enriquecimento e disrupção a qualquer preço.
O avanço sem fim da busca por essa disrupção esbarra hoje em códigos que chamamos de Moral da Humanidade. Se tudo pode em nome do avanço disruptivo da ciência, vidas humanas deixam de ter significado relevante.
É o caso da Singularidade, conceito nascido no Vale, que decreta que máquinas serão dominantes em relação aos humanos em alguns anos no Planeta. Lá, os caras convivem com isso na boa, criando dia após dia exatamente as máquinas que vão nos substituir.
Ética? Ma che ética, bele! Temos que disromper e encher o rabo de grana!
Há muito mais a considerar neste complexo cenário, mas você já entendeu o big picture. Os caras estão disrompendo nossas vidas e nossa existência na Terra.
Deixo aqui meu statment (se é que isso iporta para alguém): sou a favor da disrupção e dos avanços tecnológicos que ajudem nossa sociedade a ser algo melhor do que é (e o campo aqui é infinito, tá fácil, gente, até porque nossa sociedade é uma pocaria de fazer gosto). Todos os demais, dispenso forte!
Lei aqui a excelente reportagem da Fast Company.