Daniele Botaro: “Falamos mais sobre exclusão do que inclusão”
A head de cultura e inclusão da Oracle Latam fala sobre sua trajetória e reflete sobre como promover a diversidade na tecnologia
Daniele Botaro: “Falamos mais sobre exclusão do que inclusão”
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Lidia Capitani
30 de agosto de 2024 - 14h43
Hoje, Daniele Botaro é head de cultura e inclusão da Oracle para a América Latina. Mas sua trajetória não foi exatamente linear. Ela começou sua carreira como cientista e doutora em biofísica. O incômodo e a curiosidade sempre foram motores para sua motivação. “Quando algo me incomoda, eu me lanço em um projeto, e a ciência sempre me provocou a buscar respostas”, diz. A transição de carreira para a área de diversidade e inclusão começou assim: com um incômodo.
Enquanto fazia seu pós-doutorado, uma aluna a instigou a investigar onde estavam as mulheres na ciência. “Fizemos uma avaliação do instituto onde trabalhávamos e, de fato, as mulheres estavam lá, representando mais de 60% da força que produzia conhecimento científico, mas não eram líderes dos laboratórios, nem palestrantes principais nas conferências científicas. Foi a primeira vez que comecei a pensar seriamente sobre essa desigualdade e me perguntar de onde ela vinha”, conta.
A partir de então, Daniele começou a pesquisar a representatividade de gênero na ciência. Sua própria pesquisa a fez perceber os diferentes marcadores de sua identidade. Primeiro, o gênero; depois, a camada da orientação sexual, por ser lésbica. Mais recentemente, ao mudar-se para os Estados Unidos, a identidade latina também foi uma nova revelação.
Em 2015, ela migrou definitivamente para uma consultoria de diversidade, onde pôde transportar seu conhecimento acadêmico para o mundo corporativo. “Eu fazia diagnósticos para as empresas, mas elas frequentemente reduziam o resultado a um evento para o Dia das Mulheres ou a um treinamento para ‘acalmar’ as mulheres. Isso não mudava nada estruturalmente; pelo contrário, muitas mulheres começaram a se questionar e decidiram sair das empresas ou mudar de área”, afirma. “Esse incômodo de não poder medir e decidir o que seria implementado me levou a mudar de lado. Foi assim que me tornei líder de cultura e inclusão na Oracle”, conta.
Nesta entrevista, Daniele Botaro fala sobre como é liderar uma área de diversidade e inclusão para diferentes países e para uma empresa de tecnologia. Além disso, ela reflete sobre como a orientação sexual impactou sua carreira, de modos positivos e negativos, e também discute como as empresas podem promover líderes mais humanos e inclusivos.
Essa questão é complicada. Quando cheguei, pensei que seria simples: nove países, desenhamos uma estratégia, alinhamos localmente, implementamos, e tudo certo. Mas logo descobri que, embora a estratégia pudesse ser a mesma, a tática e a implementação tinham que variar. Aprendemos muito no processo de entender o contexto local e aplicar o que realmente fazia sentido. Trabalhar com a América Latina me deu essa flexibilidade, porque o que funciona no Chile não necessariamente funciona no Peru ou na Colômbia.
Na Colômbia, por exemplo, temos 44% de mulheres na tecnologia, uma das maiores taxas na Oracle e no mundo. Lá, focamos em projetos para acelerar a carreira das mulheres em tecnologia, sem a necessidade de priorizar a contratação. Já no Chile, onde essa porcentagem é muito menor, precisamos trabalhar com recrutamento, parcerias com universidades e programas de trainee.
Entendi que nossa estratégia de representatividade, aceleração para posições de liderança, retenção e aumento de performance precisa ser adaptada de acordo com o contexto local. A tática e a implementação não podem ser as mesmas para todos.
Vejo isso como uma oportunidade. Acredito que as empresas ou organizações que nunca tiveram compromisso com a diversidade vão continuar agindo assim, apenas fazendo o mínimo para “ficar bem na foto”. Por outro lado, as companhias que realmente acreditam no valor da diversidade vão encontrar maneiras de continuar colhendo os resultados que esperamos, como criatividade, melhor tomada de decisão e todos os outros benefícios que já conhecemos. Aqui na Oracle, por exemplo, mudamos o nome da nossa área para “Cultura e Inclusão”, porque acreditamos que a diversidade é o resultado de práticas inclusivas.
Temos um programa de estágio onde não sabemos nada sobre quem se aplica: gênero, nome, faculdade, curso, localização, nada. As pessoas vão passando por fases do processo sem que conheçamos essas informações. É apenas na fase final, durante uma dinâmica ao vivo, que descobrimos quem elas são. No ano passado, 70% das pessoas contratadas nesse programa eram mulheres, mas não era um programa específico para mulheres. O que fizemos foi eliminar barreiras como idioma, tipo de faculdade, local de residência, gênero e idade, tornando o processo o mais inclusivo possível. O resultado foi a diversidade.
Muitas empresas estabelecem metas como ter 30% ou 50% de mulheres até 2030, mas esses objetivos, muitas vezes, são só desejados, sem planejamento real. E ainda são difíceis de atingir, pois sem um ambiente adequado, os talentos chegam e vão embora, como em uma porta giratória. As empresas esperam que, ao contratar mais diversidade, o lucro e a felicidade aumentem, mas, sem uma cultura de inclusão e práticas equitativas, isso não acontece. A diversidade é o resultado de ações inclusivas.
Então, para nós, essa é uma grande oportunidade de rever práticas que podem ser excludentes, mesmo que de maneira não intencional, e garantir que talentos de várias fontes possam crescer dentro da empresa. Essa é nossa visão hoje, e, por isso, vemos essa situação como uma oportunidade de evolução no tema de cultura e inclusão.
Eu falo de um lugar privilegiado, como mulher branca e cisgênero, e recentemente aprendi a expressão “performar feminilidade”. É difícil alguém apontar e dizer que sou lésbica, a menos que eu mesma fale. Isso cria uma espécie de armadura de invisibilidade que, embora possa ser vantajosa, também tem suas desvantagens.
Ser uma mulher lésbica traz algumas vantagens. Existe um inconsciente entre os homens, que te veem como mais forte, mais parecida com eles. Acho que acabamos também construindo essa imagem. Por exemplo, minha esposa, que é da área de tecnologia, sempre trabalhou com muitos homens e teve uma experiência mais tranquila em comparação com outras mulheres. Quando nossa filha nasceu, ela foi promovida, porque havia a percepção de que eu cuidaria do bebê e ela teria mais tempo para focar no trabalho. Isso é diferente do peso que muitas mulheres enfrentam.
Mas ser uma mulher lésbica no ambiente de trabalho também tem suas desvantagens, como a solidão e a invisibilidade. Existem estereótipos sobre o que significa ser uma mulher lésbica, e parece que a sociedade tem uma lista de expectativas para você. No ambiente profissional, especialmente trabalhando no RH, sinto-me mais protegida, pois dificilmente alguém teria coragem de discriminar alguém da área. Mas ainda existem pequenos desafios. Cada vez que começo em um emprego novo, tenho que falar da minha família, adicionar minha filha e esposa no plano de saúde, e, ao mudar de equipe ou país, essa “saída do armário” se repete.
Às vezes, essa revelação traz preconceitos implícitos, como quando questionam se tudo bem eu viajar a trabalho com outras mulheres. Aprendi a lidar com isso, e, de modo geral, vejo mais evolução positiva do que negativa. Mas entendo que outras mulheres, com características diferentes das minhas, como uma mulher com deficiência ou uma mulher negra, enfrentariam camadas adicionais de preconceito. Esses pequenos comentários, as “picadinhas de mosquito” diárias, como piadas ou perguntas curiosas. Elas não te matam, mas no fim do dia deixam suas marcas.
Tenho lido muitas pesquisas sobre falta de confiança. As organizações não confiam nos funcionários, como vemos nas empresas que obrigam o trabalho no escritório ou monitoram o que as pessoas fazem no computador. Assim, as companhias não confiam que têm as pessoas certas, e os funcionários não confiam na liderança ou na estratégia delas. E quando falamos de conversas difíceis, a base delas é a confiança. Como ter coragem de enfrentar essas conversas se a confiança não está presente?
Acredito que precisamos focar cada vez mais na formação de melhores líderes. Temos ótimas lideranças de negócios, mas será que temos ótimos líderes de pessoas? Talvez não. Muitas vezes, uma pessoa excelente em negócios torna-se líder de outras pessoas, mas será que ela realmente quer desenvolvê-las e dar feedbacks honestos? Já ouvi histórias de que pessoas negras recebem menos feedback que pessoas brancas. Em alguns estudos de empresas, a liderança evita dar feedbacks para pessoas negras por medo de parecer racista.
Com o movimento de diversidade dos últimos anos, essas conversas estão ficando mais difíceis, porque as pessoas têm medo de dizer algo errado, de não entender o outro lado. Por isso, acredito muito na ideia de fazer um meio caminho. Outro dia, conversando com o Gustavo Vitti, líder de pessoas do iFood, ele mencionou um programa chamado “Halfway”. Nele, uma pessoa de um grupo diverso oferece mentoria sobre sua experiência, enquanto uma liderança, muitas vezes masculina, branca e hétero, compartilha suas habilidades de liderança. É uma troca: como posso aprender mais sobre você e como você pode aprender sobre como me tornei líder? Não se trata apenas de privilégio ou vantagem; há esforço por trás disso.
Nos últimos anos, falamos muito mais sobre exclusão do que inclusão. Quem não está aqui, quem está sendo preconceituoso, quem tem vieses inconscientes. Mas não falamos muito sobre táticas de inclusão, porque é preciso tratar a exclusão para promover a inclusão. Tudo o que vivemos até agora foi importante e colocou muitos tijolos no castelo que estamos construindo, mas o que nos trouxe até aqui não nos levará ao próximo passo.
Por isso, acredito que a base dessas conversas difíceis é a confiança. Não se trata apenas de inclusão, mas de todas as incertezas que vemos no mundo. Li um artigo do Gartner sobre o novo mundo em que vivemos, chamado de FUD: Fear, Uncertainty, and Doubt (Medo, Incerteza e Dúvida). As lideranças estão sendo consumidas por isso: uma coisa está acontecendo no mundo, outra no mercado financeiro ou em IA, e todas prometem resolver todos os problemas, mas com muitas incertezas. Estabelecer confiança em um cenário de medo e incerteza é muito difícil. Por isso, acho que as conversas difíceis vão se tornar mais raras por um tempo, até que possamos reconstruir a base da confiança.
Cada vez mais, acredito que a liderança deve ser coletiva. Não vejo mais espaço para aquela liderança que tem uma “bala de prata” capaz de resolver todos os problemas sozinha, pois as pressões vêm de todos os lados. Quando pensamos em liderança, normalmente imaginamos o CEO ou a pessoa que toma as decisões, mas essa visão está mudando. A liderança precisa ser cada vez mais compartilhada.
Acredito muito no conceito de “managing up”, que é sobre como podemos ajudar a nossa liderança a ser melhor. Como trazer novas ideias? Como transformar reclamações em soluções? Claro, o ambiente precisa ser propício para que essas ideias sejam compartilhadas, mas é importante que, ao identificar algo que não está funcionando bem, possamos propor juntos uma maneira de melhorar.
Se queremos uma liderança humana, e isso é crucial também para nossos clientes, precisamos colocar nossas pessoas no centro. Eu preciso estar junto com elas. Por isso, acredito que a tendência é que a liderança se torne cada vez mais compartilhada.
Quando uma empresa quer estabelecer um relacionamento com um público específico, como mulheres ou pessoas negras, isso pode ser difícil. É complicado para a Oracle, por exemplo, chegar diretamente a esses grupos e ganhar sua confiança. Por isso, precisamos de intermediários, parceiros nos quais esses grupos já confiam.
O que funciona muito bem para nós são as parcerias de longo prazo com organizações e movimentos já estabelecidos. Não acredito em ações pontuais, como patrocinar um evento do Women To Watch e esperar que, no dia seguinte, mulheres comecem a trabalhar na Oracle. Essas parcerias precisam ser consistentes e duradouras.
Temos várias dessas parcerias, e elas são fundamentais para nos conectar com mulheres que já estão em contato com essas organizações. Por exemplo, criamos mais de 300 vagas afirmativas para mulheres. Embora não sejam exclusivas, elas são preferenciais, e há um processo de educação da liderança envolvido. Antes de abrir uma vaga afirmativa, a descrição do cargo precisa ser revisada, o perfil pensado e os entrevistadores preparados. Não basta apenas colocar “vaga afirmativa” no título.
Também investimos na formação de mulheres por meio de programas que treinam meninas em tecnologia desde cedo. Além disso, mostramos o que significa ser mulher na empresa. Nosso site de carreiras tem uma página dedicada exclusivamente a histórias de funcionárias e estagiárias, além de informações sobre nossos programas e vagas afirmativas.
Muitas mulheres na Oracle recebem mensagens no LinkedIn de outras interessadas em saber como é trabalhar aqui. Isso cria uma rede de influenciadoras internas que nos ajudam a atrair mais mulheres. Acredito muito nesse caminho de formação, conexão e inspiração. É assim que trazemos mais mulheres para o nosso time e mostramos o que significa estar aqui.
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