Glicéria Tupinambá, uma liderança indígena que vai além da ancestralidade

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Glicéria Tupinambá, uma liderança indígena que vai além da ancestralidade

A artista e antropóloga busca recuperar a cultura tupinambá e os mantos sagrados do seu povo, e provar que mulheres também os vestiam


27 de outubro de 2023 - 8h36

Glicéria Tupinambá é artista, antropóloga, professora, cineasta e liderança da aldeia em Serra do Padeiro, na terra indígena Tupinambá de Olivença, no sul da Bahia (Crédito: Robson Dias)

Glicéria Tupinambá. Nome carregado de ancestralidade, para não deixar de usar a palavra da moda, a que ela tem muitas críticas. Tupinambá por ser porta-voz do seu povo e uma liderança respeitada pela sua aldeia em Serra do Padeiro, na terra indígena Tupinambá de Olivença, no sul da Bahia. Nasceu do desejo do avô de ter uma neta com o mesmo nome da prima, Glicéria, comida por uma onça ao tentar fugir, em 1930, de um aldeamento criado por antigos colonizadores para facilitar a aculturação dos indígenas da região. A “parente da onça”, como gosta de se definir, é também professora, pesquisadora, cineasta, artista e convocada com frequência para debater em conferências internacionais. Mesmo com todas essas camadas, ela acredita que sua identidade ainda está em construção. 

“Há um percurso bem grande que a vida me deu, mas ainda estou entendendo quem sou. Tenho essa relação com meu território, porque nele compreendi que não poderia ser livre como gostaria e precisaria lutar para que fosse diferente para mim e para todos. Até desconfio de quem eu seja, mas estou no forno. Estou sendo moldada, mas também estou me moldando”, conta, reflexiva. 

Célia, como também é conhecida, tem muitas facetas, todas coletivas. Trabalhou com sua família de dez irmãos e muitos parentes na feira, mas estudou para tornar-se professora e ajudar os tupinambás a se defenderem e seguirem em frente. Varria a casa e fazia café a contragosto quando mais nova, mas hoje está na militância das demandas indígenas para proteger o território tupinambá e assegurar os direitos das mulheres indígenas. 

A liderança ativista de Glicéria começou quando percebeu que não poderia manter sua liberdade de menina. Ela lembra que viveu uma infância plena e divertida, até imporem limites a ela. “Éramos uma família de dezenas de pessoas. Nadávamos no rio, subíamos no pé de jaca. Me embrenhava no mato para ir atrás de comida. Minha mãe ficava preocupada, porque eu demorava para voltar e ela pensava que uma cobra tinha me pegado. Quando era jovem, eu apenas ia. Agora, tenho filhos. Eles me deram compasso e régua.” 

O despertar de Glicéria 

Não foram apenas os filhos que fizeram Célia mudar de perspectiva. Aos 8 anos, a menina de tranças enormes e vestido listrado saiu para pescar com a família e, enquanto brincava com os irmãos no caminho de volta para casa, encontrou uma cerca que os impedia de retornar. Do outro lado, havia cancela e cadeado. Eles, que sempre fizeram esse trajeto sem obstáculos, ficaram assustados, mas passaram por cima da cancela para avisar os mais velhos. 

“Achava que o rio era público, que a mata era para todos. Para mim, a terra era nossa, ninguém mexeria no que o outro plantou. Mas chegaram outras pessoas e disseram que aquilo tinha dono, que tinham um documento. Entendi, então, que eu não era tão livre assim, mas que, ao mesmo tempo, aquele território nos pertencia. Foi esse sentimento que mudou tudo em mim.” 

O episódio foi seguido de outros semelhantes, até que, em 2004, o processo de invasão e apropriação ilegal das terras dos tupinambás no sul da Bahia tomou proporções grandiosas, lembra, com extração de madeira e a caça intensiva por fazendeiros. Ela e seu povo decidiram, então, iniciar um processo, a partir de 2004, de retomada de seu território. 

“Presenciamos um crime ambiental. Tiraram as madeiras de dentro dos rios das nascentes. Fizemos denúncias, pois íamos ficar sem água. Estávamos ameaçados, então estudei muito. Fazia curso expresso de Direito para tentar entender nossos direitos. Mas, no dia da audiência, o juiz disse que indígena não tinha direito. Voltamos para casa e logo iniciamos a retomada. Deu certo, mas ainda estamos no processo. Quero deixar esse legado para os meus sobrinhos, afilhados, filhos… todos. É sobre lutar, resistir, acreditar, ser, permitir e existir.” 

Liderança por necessidade

Quase vinte anos depois, Célia se preocupa em dar continuidade aos seus estudos para garantir educação a todos os tupinambás. Por isso, há alguns anos decidiu documentar sua cultura: comprou máquina fotográfica, criou uma rádio comunitária na aldeia e passou a articular ações com os jovens. “Sou a agitadora no meu território. Quero formação e qualidade de acesso à informação para todos. Nosso povo precisa entender nosso pertencimento, saber qual é o nosso lugar. Admirar o do outro, claro, mas desejar o seu.” 

Glicéria: “Sou a agitadora no meu território. Quero formação e qualidade de acesso à informação para todos (Crédito: Robson Dias)

Ela fala com simplicidade, mas carrega no currículo muito conhecimento de sua origem. Foi professora no Colégio Estadual Indígena Tupinambá Serra do Padeiro, tem licenciatura no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA) e é mestranda em Antropologia social na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Além disso, foi presidente da Associação dos Índios Tupinambá da Serra do Padeiro, quando era responsável pela aprovação e gestão de projetos voltados ao fortalecimento da aldeia. 

Como cineasta, Glicéria dirigiu o documentário “Voz das Mulheres Indígenas”, de 2015, que trouxe mulheres indígenas do Nordeste para falar sobre suas trajetórias. Desde então, tem trabalhado na área de audiovisual, dirigindo projetos com a comunidade.  

Mas a arte pela qual Célia é mais reconhecida mesmo e a faz ser destaque de matérias jornalísticas no Brasil e no mundo são os mantos sagrados tupinambás, que ela confeccionou e hoje expõe pelo Brasil para chamar atenção para esses elementos culturais imprescindíveis do seu povo. 

Em busca dos mantos sagrados 

Os mantos Tupinambá são símbolos da memória do povo tupinambá e de sua resistência, mas também representam a esperança de um mundo melhor. Sagrados, são a materialização dos deuses na Terra, e só podem ser usados por lideranças indígenas com autorização dos encantados, espíritos guardiões da natureza. Assim como o canto Tupinambá, simbolizam a cura.

Glicéria diz que, se todos os mantos estiverem juntos no mesmo espaço, seria possível fazer um ritual poderoso, em que um desejo poderia ser atendido. O pedido ela já tem: a cura da humanidade, que pede socorro. “Estamos em guerra, mas é apenas o início. As coisas podem piorar muito, e esta é a única chance que temos.” 

Mas esses mantos tradicionais, 11 no total, estão longe de sua terra. Datados do século 16, foram levados para a Europa por colonizadores, atraídos por sua beleza e poder, e foram saqueados, trocados em negociações diplomáticas ou por escambo. Vestiram muitos integrantes da nobreza, e hoje estão expostos em museus ao redor do continente, inacessíveis ao contato direto dos tupinambás. Além desses mantos, há relatos de outros dois que estariam perdidos ou escondidos, e Glicéria tem certeza de que existem: “Já recebi a mensagem de que um deles está em um baú. Vou encontrá-los, mas tudo no seu tempo.”  

No Brasil, não restou nem um manto. Mas, com o desejo de reivindicar os outros e dar um presente aos encantados, Glicéria iniciou uma pesquisa em 2005 que dura até hoje. O objetivo: recuperar esses trajes sagrados. Um ano depois, confeccionou um primeiro manto, com ajuda de sua comunidade. Depois, criou e produziu mais dois, numa caminhada que a levou a encontrar as vestimentas levadas para a Europa. Em seguida, organizou e promoveu instalações pelo Brasil para mostrar a relevância dos mantos para os tupinambás e para o país. 

Para além da ancestralidade 

Retomar os mantos Tupinambá, para Glicéria, é reconectar-se ao seu território, aos encantados e a toda a cultura tupinambá, incluindo sua relação com as plantas, os animais, o passado e o presente. Com a pesquisa e essa caminhada, ela quer reconquistar o direito à memória, à ancestralidade, ao aprendizado e à verdade do seu povo. Recuperar, enfim, sua tradição. 

Para isso, Célia diz que consulta, a todo instante, os encantados e os próprios mantos, e eles a guiam nessa retomada. Ela também tenta provar, na sua pesquisa, que o manto era, na verdade, feminino. “Muitos registros mostram que o manto era usado por mulheres. Havia a ideia de que só os caciques o vestiam, e faziam isso mesmo, mas em situações políticas. Descobri, no entanto, que, quando precisavam de algum feito ritualístico importante e os pajés não davam conta, buscavam as mulheres tupinambás que falavam com o mundo espiritual e dominavam as ervas, as majés. Só que as pessoas apagaram isso da história. Colocavam as mulheres como subalternas, mas os mantos eram feitos e vestidos por elas”.  

Os mantos e toda a riqueza cultural tupinambá remetem à ancestralidade, palavra considerada tendência na comunicação e nas pesquisas sobre os povos indígenas. Para Glicéria, no entanto, essa é uma narrativa que pode atrapalhar a trajetória dessas comunidades de terem suas verdades registradas e validadas.  

“Alfredo, primo do meu avô, dizia que a chuva existia porque o vento empurrava as nuvens para buscar água e molhar a mata. Nas minhas aulas de ciência, mal estudei sobre o vento. Pode ser uma verdade, mas eu prefiro a nossa, que vem da observação. E estou aqui para dizer que esse lugar existe. Quero deixar nossas magias, nossas marcas e nossa existência no mundo. O meu tem tanto valor quanto o seu. Por que o que meu povo fala não é ciência? Estamos construindo ciência também, porque nossa narrativa é um conhecimento e pode ser explicado. Nossa tradição e nossas profecias não podem ser retiradas assim. Não é só ancestralidade. É verdade, também.” 

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