A coisa mais difícil que já fiz

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Opinião

A coisa mais difícil que já fiz

O medo é paralisante e, se nos deixarmos dominar por ele, não chegaremos a lugar algum. Mas tenham em mente que sentir algum medo diante de um desafio gigante não é algo ruim, muito pelo contrário


3 de abril de 2018 - 10h13

Créditos: Peshkova/iStock

Eu costumo dizer que todos nós temos o direito sagrado de entrar em pânico por cinco minutos antes de encarar um desafio complexo. No entanto, esse direito se extingue completamente, tão logo se passem os tais cinco minutos. No minuto seis, temos de arregaçar as mangas e partir para dentro do leão, do mamute, do zumbi, do monstro da última fase, do deadline ou de qualquer coisa que sair por aquele portão, como diria o gladiador Maximus, de Ridley Scott. O medo é paralisante e, se nos deixarmos dominar por ele, não chegaremos a lugar algum. Mas tenham em mente que sentir algum medo diante de um desafio gigante não é algo ruim, muito pelo contrário.

Eu cobri a Copa do Mundo de 2002 pelo Jornal do Brasil e tive a glória de ter como companheiro de viagem o genial Tostão. No dia da decisão, chegamos bem cedo ao estádio de Yokohama e ficamos batendo papo por pelo menos duas horas, antes do apito inicial de Brasil x Alemanha. Lá pelas tantas, eu perguntei ao veterano companheiro de cobertura: “Você acha que o Brasil vai ganhar?” Tostão respondeu que sim, porque ele havia passado no vestiário, conversado com os jogadores, e constatado que “eles estavam nervosos”. “Mas isso é bom?”, perguntei. Ele explicou que sim, que na final de 1970 até o Pelé estava nervoso — e que isso é fundamental para que o grupo entre de cabeça no jogo. Em 1998, ele contou, o time estava calmo demais, relaxado demais, sem um pingo de medo de perder a decisão. Deu no que deu: França 3 x 0. Em 2002, ganhamos o Penta com um 2 x 0 nos alemães.

Há muitas técnicas e manhas para lidar com um desafio difícil. O meu jeito de lidar com o frio na barriga é recordar que já fiz coisas ainda mais difíceis do que aquela. Creiam-me, todos nós já fizemos coisas extremamente difíceis, muitas vezes quando éramos mais jovens e muito menos experientes. Sempre que passo por um aperto, gosto de lembrar da coisa mais difícil que já fiz na vida, a qual compartilharei agora com vocês. O problema é que para revelar esse momento de coragem eu terei de ter ainda mais coragem. A coragem de revelar a minha primeira formação, que nada tem a ver com marketing, comunicação, publicidade ou mesmo literatura, campos que sempre foram e sempre serão minha zona de conforto e minha paixão. Prometam não achar graça — ou achem, como preferirem —, mas meu primeiro diploma foi o de Ciências Contábeis. Sim, amigos, este homem que ama as palavras, já amou os números. Sou contador e, pasmem, comecei minha carreira em firmas de auditoria. Agora que vocês conheceram meu segredo que estava guardado a sete chaves, posso falar da coisa mais difícil que fiz. Porque ela não foi uma campanha de dezenas de milhões de reais ou o reposicionamento de uma marca bilionária, mas uma demonstração contábil.

Nos primeiros anos da minha carreira, eu trabalhei na Price Waterhouse Coopers, uma empresa extraordinária, extremamente profissional e com um dos ambientes de trabalho mais incríveis que que já experimentei. Mas essa é a parte fácil, e meu objetivo, aqui, é falar da coisa mais difícil. Não vou encher a paciência de vocês com complexos conceitos contábeis. Basta dizer que, entre as demonstrações financeiras exigidas pela Lei das S.A., existe uma chamada Demonstração das Origens e Aplicações de Recursos, que os mais antigos chamavam de Usos e Fontes e os mais modernos abreviaram para DOAR. Pois bem, a tal DOAR era (e desconfio que ainda seja) a pièce-de-résistance do trabalho de um grande auditor. Só os craques conseguiam entender a lógica e a beleza daquele troço. E eu tinha um trauma particular com essa peça contábil. Ao longo de alguns anos na Price — nos quais fui avaliado por cada job que, em média, duravam de duas a três semanas — eu só recebi um único D. Foram dezenas e dezenas de avaliações na carreira, todas excelentes, mas aquele maldito D me assombrava. Um quesito, entre muitas de uma avaliação específica: “Conhecimentos Técnicos”.

Duas lições: não desanimem diante de montanhas que parecem impossíveis de serem escaladas e jamais sintam-se embaraçados por etapas anteriores de suas carreiras ou suas vidas

Manuel Luís Araújo, um gerentão de descendência portuguesa, como muitos na Price do Rio, atribuiu-me o famigerado D porque eu me enrolei com a DOAR de um cliente. Normalmente quem fazia a DOAR era o gerente do job. Nem o contador do cliente sabia fazer aquilo direito, mas o Araújo achava que, como auditor sênior, eu tinha de aprender a fazer todas as demonstrações. Fiquei uma hora (juro) conversando com ele, tentando mudar o D para C. Afinal, eu havia falhado só na DOAR, implorava, sem sucesso. Não teve jeito. Sábio, o Araújo, encerrou a conversa: “Se eu mudar esse D, você vai deixar passar. Com ele aí e sabendo quem você é, aposto que você vai brigar para virar craque”. Imediatamente perguntei a ele quem era o bambambã do assunto na Price. Ele falou que além dele e do Sérgio Brilhante Albuquerque, havia um sócio de São Paulo que era craque no assunto. O tal sócio passou uns tempos no escritório do Rio e eu simplesmente stalkeei o cara. Enchi a paciência do pobre abnegado, um ídolo cujo nome esqueci. Aprendi tudo. Então veio o Grupo Unipar, também cliente do Araújo, que tinha uma enlouquecedora DOAR consolidada e em moeda constante. Trabalho de campo concluído, faltava só o relatório com a DOAR, que seria fechado no escritório da Price. Hora da verdade.

O Araújo foi logo avisando: “Esse aí é muito difícil, quem tem de fazer sou eu mesmo. Mas, se você quiser tentar…”. Eu falei que eu ia fechar aquela DOAR nem que eu tivesse de explodir a cabeça. Reservei uma sala e me tranquei nela por um dia inteiro. Tive que colar filas e filas de papel coluna para caberem todas as empresas do grupo, cada uma com um DOAR próprio, que seriam transformados em moeda constante e, em seguida, consolidados numa peça única. Quando terminei de fechar e apurar todas as colunas, usando lápis, borracha e calculadora de fita, pois em 1987 um laptop era quase uma miragem, a DOAR bateu de primeira, até nos centavos. Acho que não cheguei a chorar de emoção, mas foi quase. Corri até a sala do Araújo, peguei-o pelo braço e levei-o para ver minha grande obra. Ele conferiu de cabo a rabo, deu um sorriso discreto, saiu sem falar nada, foi até a sala dele e voltou com um papel na mão. Era a minha avaliação. “Conhecimento técnico: A”. Daquele dia em diante em diante, toda vez que me deparo com algo difícil na carreira e na vida, penso assim: lembre-se de que você fez a DOAR consolidada em moeda constante das empresas químicas do Grupo Unipar.

Há uma recompensa adicional, que é uma história dentro dessa história. Aconteceu muitos anos depois, quando eu já era um profissional tarimbado de marketing e, provavelmente, não lembrava mais como fechar uma DOAR. Eu estava sendo entrevistado por Pedro Moreira Salles, acionista e CEO do Unibanco, para a posição de CMO, com assento no comitê executivo e reporte para ele. O Pedro olhou detalhadamente o meu currículo, cheio de diplomas, MBAs e pós-graduações, e falou: “Quer saber? A coisa que eu realmente respeito no seu currículo é o diploma de Ciências Contábeis pela UERJ. Para isso, sei que você teve de estudar bastante. O resto, dá para levar na flauta. Além do mais, um marqueteiro contador não vai deixar o orçamento estourar”. Foi quando eu resolvi contar a história da DOAR do Grupo Unipar que, sem que eu soubesse, pertenceu ao pai do Pedro, o embaixador Walther Moreira Salles. Ele adorou a história e até hoje eu acredito que se eu não tivesse me formado contador ou fechado aquela DOAR jamais teria sido contratado para o emprego que mudou a minha vida. Duas lições: não desanimem diante de montanhas que parecem impossíveis de serem escaladas e jamais sintam-se embaraçados por etapas anteriores de suas carreiras ou suas vidas, por mais que elas pareçam desconectadas de realidade atual.

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