O novo pode vir da simplicidade – e do passado
Em Cannes, a criatividade prova que inovar também é reinventar o velho: de legendas a planilhas, tudo vira arte.
O novo pode vir da simplicidade – e do passado
BuscarEm Cannes, a criatividade prova que inovar também é reinventar o velho: de legendas a planilhas, tudo vira arte.
18 de junho de 2025 - 14h20
Em meio ao brilho e à grandiosidade do Festival de Cannes, onde tendências globais são desenhadas e celebradas, um tema me chamou mais atenção do que nunca: a reinvenção.
Poderíamos facilmente nos perder em discussões urgentes sobre sustentabilidade e a reciclagem de lixo eletrônico representada por aquela pilha de componentes esquecidos de computadores e celulares que acumulamos ao longo dos anos. No entanto, o tipo de reciclagem que quero explorar aqui é diferente. Refiro-me à arte de resgatar tecnologias antigas, consideradas ultrapassadas ou consolidadas, e transformá-las em algo novo, funcional e incrivelmente criativo.
Este ano, duas campanhas premiadas destacaram-se precisamente por isso: elas não buscaram reinventar a roda, mas sim usar a roda de maneira inesperada.
A primeira delas é a “Caption with Intention”, desenvolvida pela FCB. Desde os anos 1970, legendas de filmes permanecem praticamente inalteradas em sua concepção básica, servindo principalmente como uma ferramenta funcional para transmitir diálogos.
Mas e se pudéssemos ir além? E se as legendas pudessem capturar nuances emocionais, ajudando deficientes auditivos a compreenderem não apenas o que está sendo dito, mas como está sendo dito? Essa é a mágica dessa campanha. Ela reinterpreta algo tão trivial quanto legendas, transformando-as em uma experiência sensorial mais rica e inclusiva. É como se a velha tecnologia das legendas finalmente despertasse para seu potencial adormecido.
A segunda campanha que me chamou atenção foi criada pelo Spotify e é pura ousadia visual: um clipe musical produzido no Excel. Sim, aquele mesmo software de planilhas que acompanha nossas vidas desde o início dos anos 1980. O projeto é brilhante em sua simplicidade. À medida que a música avança, os efeitos visuais ganham vida, evoluindo em complexidade até atingirem um clímax sincronizado com o ápice da canção.
Parece impossível que algo tão prosaico quanto o Excel possa ser transformado em uma obra de arte audiovisual, mas é exatamente isso que acontece. Aqui, a genialidade está na escolha deliberada de uma plataforma considerada ultrapassada para realizar algo absolutamente contemporâneo.
Essas ideias são fascinantes porque representam um desafio maior do que simplesmente adotar tecnologias emergentes. Todos sabemos que lançar mão de novidades tecnológicas pode resultar em trabalhos impactantes. No entanto, pegar algo antigo – algo que todos deram como obsoleto – e transformá-lo em algo relevante e surpreendente é uma façanha muito mais significativa. Quando bem-sucedidas, essas iniciativas não apenas impressionam jurados (como os leões deste festival), mas também nos lembram do valor intrínseco da criatividade humana.
Isso me faz refletir sobre nossa relação com o descarte tecnológico. Quantas vezes jogamos ferramentas ou plataformas no canto empoeirado de nossas memórias digitais sem questionar se ainda podem ter algum uso? Talvez seja hora de reconsiderarmos essa prática. Antes de buscar sempre o novo, deveríamos perguntar: será que aquela tecnologia aparentemente ultrapassada não poderia ser reaproveitada de forma inovadora?
Além de ser uma abordagem econômica, essa prática carrega implicações sutis, mas importantes, para a sustentabilidade. Embora esses projetos não tenham como objetivo direto salvar o planeta, eles reduzem indiretamente o consumo de recursos. Tecnologias antigas geralmente exigem menos energia e infraestrutura – menos servidores rodando 24 horas por dia, menos hardware sendo fabricado. Assim, ao invés de contribuir para o ciclo voraz de produção e descarte, estaríamos estendendo o ciclo de vida útil do que já existe.
Enquanto observo o burburinho de Cannes, fico maravilhado com a capacidade da criatividade de subverter expectativas. Estamos acostumados a pensar no futuro como sinônimo de progresso tecnológico, mas talvez a verdadeira revolução esteja em olhar para trás – ou melhor, para o presente que negligenciamos. Repensar o que já temos não é apenas um exercício de inovação; é uma declaração de respeito ao tempo, aos recursos e à nossa própria história.
Ao fim do dia, Cannes me ensina que, às vezes, o caminho mais interessante para o futuro não é correr em direção ao novo, mas sim redescobrir o velho com olhos curiosos e mentes abertas.
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