Começou!

Buscar
Publicidade

Opinião

Começou!

Em qualquer outra época, uma manchete assim seria criticada pela pobreza e concisão. Entretanto, quando uma Copa é iniciada, uma portada de edição com uma palavra é mais do que suficiente


14 de junho de 2018 - 7h00

Crédito: mauromod/iStock

“Começou!”. Esta poderia ser a manchete desta quinta-feira em todos os jornais do País. Em qualquer outra época do ano, uma manchete assim geraria dúvidas, daria margem a interpretações dúbias e certamente seria criticada pela pobreza e desnecessária concisão. Entretanto, de quatro em quatro anos, quando uma Copa do Mundo é iniciada, uma portada de edição contendo apenas uma palavra é mais do que suficiente para dizer tudo. Uma palavra — é importante acrescentar — seguida de uma exclamação. Uma exclamação para destacar o tom dramático da notícia. Começou! Todos sabem o quê. Todos sabem como. Todos sabem aonde. Começou a 21a edição do mais extraordinário evento sociopolítico-econômico-cultural-esportivo do planeta. De agora até a grande final do dia 15 de julho, em Moscou, o mundo prenderá a respiração para acompanhar o drama dos 32 países que perseguem a menos belicosa e uma das mais importantes conquistas com a qual uma nação pode sonhar.

Desde criança que eu, assim como muitos outros brasileiros apaixonados por futebol, cultivo um estranho hábito: o de, em certo grau, pensar a vida de quatro em quatro anos, intervalo que separa uma Copa do Mundo da seguinte. É óbvio que nos anos sem Copa a vida continua, com trabalho, contas para pagar, viagens, casamentos, batizados, velórios, festas e toda sorte de dramas humanos. Mas os anos de copa são especiais. Dá vontade de circundá-los com pincel atômico vermelho no calendário das nossas vidas. Quem ama o futebol sabe do que estou falando. Quem ama futebol faz planos para a Copa de 2032, quando estaremos com sei lá quantos anos, para a copa de dois mil e lá vai fumaça, quando estaremos com 70 ou 80 anos e até para a de dois mil e lá vai mais fumaça ainda, que veremos com cem anos e talvez — eu disse talvez! — seja a nossa última. Nunca se sabe como a medicina evoluirá até lá, sobretudo a cardiologia, especialidade que mais interessa aos fanáticos do esporte.

Se alguém fala que se casou em 1982 eu penso em Paolo Rossi. Se me contam que uma criança nasceu em 1994 eu lembro do Branco, cobrando uma falta contra a Holanda. E se me contam uma viagem realizada em 2002 eu viajo mentalmente para Yokohama, e vejo o Ronaldo Fenômeno, com seu pavoroso corte de cabelo Cascão, acabando com a Alemanha na final. Esse comportamento deve estar situado em algum lugar entre um desvio de caráter e uma patologia, mas, definitivamente, não é algo normal. Consola-me apenas saber que meu caso, embora grave, não é raro. Os que sofrem da minha doença estão em festa: esta semana começa a Copa da Rússia.

“Você não está numa Copa do Mundo enquanto não tiver uma amostra do colorido, da habilidade e do drama do Brasil, o mais famoso entre os 204 países inscritos para a competição”. Assim escreveu o inglês Rob Hughes, do International Herald Tribune, sobre a estreia da nossa seleção na Copa do Mundo de 2002. Se os próprios ingleses, com passado imperialista e inventores do futebol, consideram-nos a grande potência do planeta futebol, por que será que ainda tratamos o assunto de forma tão amadora? Como diriam os economistas, o planeta futebol movimenta bilhões e bilhões de dólares em divisas. O PIB desse lugar é muito superior ao da maior parte das nações do mundo. Se não conseguimos, por mais que o País viva a pleitear, um assento de luxo no grande concerto das nações industrializadas, por que não nos aboletamos na cadeira cativa do comando do mundo futeboleiro? Por que não assumimos de vez que nosso negócio é samba e arquibancada e vamos cuidar da nossa vida?

Se considerarmos que 90% dos cidadãos do planeta passam a maior parte do tempo pensando em sexo e futebol, não me parece má ideia que conquistemos a liderança mundial por meio da bola. No aspecto da libido, também estaríamos bem, mas os critérios de avaliação seriam demasiadamente subjetivos. Ocupemo-nos, pois, do futebol. Só que, para isso, teríamos de refazer inteiramente a nossa constituição, com vistas a adequá-la à nova e importante missão nacional. Em primeiro lugar, faríamos eleições diretas, em sufrágio universal, para eleição do presidente da CBF — que, doravante, seria a autoridade máxima do País. Também seriam de fundamental importância os plebiscitos para a escolha — não do sistema de governo, mas do sistema de jogo. Basta de ditadores impondo-nos seus 3-5-2 e 4-3-1-2 Todos sabemos que o coração do povão balança entre o 4-3-3 e o 4-4-2. Deixemos, portanto, que a população decida como vamos jogar no Qatar em 2022.

Também não tem cabimento que a escolha do técnico da seleção esteja nas mãos de poucos. A eleição de técnico não seria direta, pois daria muito trabalho, mas votaríamos em deputados futebolísticos distritais que, no Congresso Futebolístico Nacional, escolheriam o nome do treinador. Além do técnico, os deputados escolheriam também os 23 jogadores que vestiriam a camisa da seleção brasileira. Os ministros, escolhidos pelo presidente eleito da CBF e referendados pelo Congresso Futebolístico Nacional, estariam distribuídos pelas seguintes pastas: Fisiologia e Medicina Desportiva; Desenvolvimento Tático; Material Esportivo; Preparação Física e Psicológica; Administração, Finanças e Organização de Campeonatos; Fomento de Novos Talentos; e Construção de Estádios. Um ministério enxuto, mas extremamente funcional.

Impostos, apenas três: o ICME – Imposto para a Construção de Modernos Estádios; a CPMF – Contribuição Provisória para a Moralização do Futebol; e o PIS – Pagamento para a Infraestrutura da Seleção. Jogadores de futebol e clubes estariam isentos do pagamento dos tributos — estes, desde que mantivessem em funcionamento escolinhas e centros de treinamento, de acordo com os padrões internacionais. A população esqueceria a cotação do dólar, a inflação e o desemprego. Em vez disso, o ataque da Argentina, a defesa da Alemanha e o dedo do pé do Neymar seriam as nossas grandes preocupações. E se é verdade que temos tanta corrupção no futebol quanto na política, no futebol ao menos será mais fácil saber se o governo vai bem ou mal. Se ganhamos, vamos bem. Se perdemos, vamos mal. Sendo que podemos até considerar um impeachment do técnico, caso a sequência de derrotas se estenda além do aceitável pela população.

Finalmente, pensando na globalização, o Brasil mudaria seu nome para República Popular do Futebol. Se achássemos conveniente uma monarquia parlamentar, já teríamos até um rei: Pelé, óbvio. O resto seria consequência, pois em país que está ganhando não se mexe. Meu candidato para presidente seria o Tostão, com o Tite de vice — a depender do resultado na Rússia. Tostão seria o líder genial dos povos futeboleiros, que finalmente conduziria os brasileiros à utopia da grande representatividade mundial. Aliás, tostão seria nome da moeda da nova e alvissareira república. É isso. Tostão para presidente. E pra frente, Brasil.

No livro El Fútbol a Sol y Sombra, o uruguaio Eduardo Galeano relembra uma cantiga que ouviu de um grupo de meninos, que retornava de uma pelada nos subúrbios de Montevidéu. “Ganamos, perdimos, igual nos divertimos” — cantavam, alegremente, os guris. Ganhamos, perdemos, de qualquer jeito nos divertimos. Seria maravilhoso acompanhar uma Copa em tal estado de espírito. Infelizmente, para os brasileiros isso é impossível. Sendo assim, resta-me apenas suspirar e dizer baixinho: que inveja dos peruanos, que vão à Rússia só para se divertir. A verdade é que, embora contemos a passagem de nossas vidas de quatro em quatro anos, por meio das Copas, a gente sabe que, para um brasileiro, a Copa do Mundo é sempre maior do que a vida.

Publicidade

Compartilhe

Veja também

  • Web Summit 2024: um marco para mulheres na tecnologia

    Apesar dos avanços, a inclusão de mulheres continua sendo um campo de batalha contra preconceitos de gênero e disparidades salariais

  • A aula dada pelo Itaú e por Madonna

    Ação não é apenas algo fora da curva, é um chamado para que todas as empresas pensem e para que os comunicadores entendam que o mercado mudou