Assinar

Hoje, 2058

Buscar
Publicidade
Opinião

Hoje, 2058

Hoje, em pleno 2058, parece assustador pensar que ninguém via toda informação existente fora das telas, integrada ao seu redor


20 de abril de 2018 - 7h15

Crédito: iStock/bestdesigns

Existiu uma época em que todo conhecimento se resumia a um retângulo. E não, não estou falando só das antigas telas de LCD, LED, OLED e todas as outras siglas que surgiram depois disso. Estou falando também da página do livro de celulose. Dos quadros com suas molduras rebuscadas. Dos retratos em antigo papel fotográfico. E até mesmo dos papiros que, se desenrolados totalmente, formariam ainda longos e estreitos retângulos.

Porém, por muitos séculos, o conhecimento do dia a dia, transmitido de pai para filho, era passado pela ação. Fosse um experiente índio segurando a lança para mostrar a arte da pesca ao pequeno indiozinho, passando pelo sapateiro mestre de ofício em um burgo qualquer, com os pregos ainda na boca para ensinar, ao aprendiz, a forma certa de se cravar o couro na sola, por muito tempo e, para muita gente, o conhecimento era transmitido e recebido pelo corpo todo.

Talvez nenhuma invenção tenha sido tão revolucionária na humanidade como a escrita. E talvez nenhuma invenção tenha potencializado tanto outra invenção quanto a imprensa. E isso foi ótimo. Mas, como em um efeito colateral não planejado, a escrita fez com que acreditássemos que todo tipo de conhecimento estava preso num retângulo.

Sendo assim, nada mais óbvio que, assim que a tecnologia nos permitiu, quiséssemos apenas reproduzir imagens em um retângulo. Na pintura, na foto, no cinema, na TV, nos computadores e celulares, o protagonismo do retângulo plano foi tão grande que estudiosos, lá em um longínquo 2017, falavam de um futuro nem tão distante, quando lembraríamos daqueles tempos como a única época da humanidade em que toda realidade foi reduzida a um retângulo bidimensional. E isso fazia todo sentido.

No começo dos anos 20 — digo, 2020 —, por conta das realidades virtuais, aumentadas e mistas, muita gente começou a falar que as telas iam morrer. Outras, mais ponderadas, entenderam que não (como nenhuma mídia inventada jamais morreu), mas iam perder relevância. E isso não ia demorar muito. Da mesma forma que o celular deixou de ser um objeto de luxo para estar no bolso de praticamente todos habitantes do planeta, em dez anos, não demorou muito mais que isso, para esses mesmos aparelhos se diluírem no ar.

Pois é, colegas. Hoje, em pleno 2058, parece assustador pensar que ninguém via toda informação existente fora das telas, integrada ao seu redor. Naquela época, o aprendizado, a diversão, a comunicação e o consumo de qualquer tipo de conteúdo ainda era escravo do retângulo.

O aniquilamento do retângulo por meio da realidade estendida também poderia ter um efeito benéfico: o corpo de volta, como centro do consumo de informação. E isso mudou tudo

A realidade virtual e aumentada ainda eram termos futuristas e assustadores, e a maioria das pessoas vivia em pânico de que amanhãs distópicos deixariam todos trancados em suas casas, com uns óculos esquisitos na cara. Mas curiosamente, nessa mesma época, ninguém achava estranho ficar um fim de semana inteiro trancado em casa de pijama vendo séries em uma telona, naquele serviço que ainda se chamava Netflix. E, menos ainda, passar um jantar inteiro acompanhado de outras pessoas, mas olhando apenas para uma telinha na palma da própria mão.

Porém, mesmo com o receio de muitos, a realidade estendida foi se consolidando nos anos 2030 e, invariavelmente, levou o conteúdo audiovisual de forma contextualizada naturalmente ao redor de cada pessoa. E acabou-se, finalmente, a ditatura do retângulo.

Não podemos esquecer o papel da inteligência artificial, fundamental pra que tudo isso acontecesse, fazendo-se invisível, como a eletricidade no século 20, a ponto de não percebermos mais como quase todo conteúdo que consumimos é feito exclusivamente para cada um de nós.

O que os profetas do caos lá nos anos 2010 e 2020 não pensavam era que se o cinema, a TV e o livro impresso fizeram muita coisa boa para as pessoas, mesmo sob acusação de serem instrumentos alienantes (pois é, pois é … falavam isso até dos livros, quando inventaram a imprensa); o aniquilamento do retângulo por meio da realidade estendida também poderia ter um efeito benéfico: o corpo de volta, como centro do consumo de informação. E isso mudou tudo. Quer dizer, fez muita coisa voltar a ser o que já tinha sido. Só que um pouquinho diferente.

Os retângulos de palavras, imagens e frames fizeram boa parte da humanidade acreditar que o corpo era um simples escravo do cérebro. E, consequentemente, que o cérebro era o que nos definia, sendo o corpo, algo menor. Apenas uma carcaça.

A realidade estendida trouxe o corpo de volta, como parte de nós: “Eu não tenho um corpo. Eu sou o meu corpo. E é com ele que eu aprendo, que eu penso, que eu consumo, que eu vivo.” E aí foi um pulo pra sala de aula retangular, com uma lousa (adivinha?) retangular ter meios para deixar de parecer uma prisão (e uma fábrica) e voltar a ser o mundo real, ainda que estendido.

Cada pessoa passou a ter um mundo de conteúdo exclusivo ao seu redor, a qualquer momento que julgasse conveniente.

Mas sejamos justos: as telas, os frames e os quadros sempre serão ótimos para se contar  uma grande parte das boas histórias que conhecemos. E estas boas histórias nunca vão morrer, nem deixarão de ser arrebatadoras, quando bem contadas.

Porém, também não deixemos de lembrar que todos os eventos mostrados ao nosso redor, em pleno 2058, estão contextualizados na nossa realidade de forma absolutamente natural, mas foram, de fato, criados e curados pelos contadores de histórias que nasceram já envolvidos pelo meio e pela mensagem.

Isso pode ser bom. E pode ser mau. Como toda tecnologia que existe. Cabe a nós usarmos da melhor forma que pudermos.

Publicidade

Compartilhe

Veja também

  • Quando menos é muito mais

    As agências independentes provam que escala não é sinônimo de relevância

  • Quando a publicidade vai parar de usar o regionalismo como cota?

    Não é só colocar um chimarrão na mão e um chapéu de couro na cabeça para fazer regionalismo