Pequena ode aos quietos
Se vivemos em um mundo onde todos falam ao mesmo tempo, é preciso saber apreciar quem se faz ouvir sem estardalhaço
Se vivemos em um mundo onde todos falam ao mesmo tempo, é preciso saber apreciar quem se faz ouvir sem estardalhaço
Em um processo de seleção, marquei uma conversa com um redator. Nas palavras da pessoa que o indicou, não sobravam dúvidas: “É um cara que todo mundo quer estar perto, aquele que a gente procura nos problemas porque sabe que ele vai te ouvir”. Curiosidade nas alturas, fui rumo à videoconferência na esperança de que a tela fosse um mero detalhe entre nós. E assim foi. No meio do papo, verbalizei que ele parecia maduro demais para a idade, como quem carrega uma antiga sabedoria na pequena mochila da vida. A surpresa, no entanto, veio de um questionamento que ele trazia consigo: que talvez fosse quieto demais, que postasse de menos, que não era uma figura que se destacava nas redes sociais, por assim dizer. A conversa se esticou ainda mais, desejei que a gente estivesse num boteco, mas findamos como quem anseia pela segunda dose da vacina para um encontro real. Ele não aceitou a proposta, mas guardei uma admiração grande e, de quebra, fiquei com os seus questionamentos na cabeça. Tomei como meus. Afinal, o que é aparecer de menos quando se tem um bom trabalho?
Não há aqui a intenção de uma comparação entre os personagens, mas me lembrei dessa conversa quando o Charlie Watts faleceu. Da bateria do Charlie pulei para a marcenaria do Paulinho da Viola. E vou tentar fechar esses pontos abertos como quem traça uma pequena ode aos mais quietos.
Por uma dessas bobagens irresistíveis e até inexplicáveis, tendemos a escolher a parte favorita de um conjunto. Outro dia, vi uma postagem que dizia: “Você tem uma boca favorita do fogão, pode revelar.” Eu tenho. É a do canto inferior direito. O mesmo vale para integrantes de bandas. Dos Rolling Stones, o meu Stone de coração é o Keith Richards. Porém, Charlie Watts era – por quilômetros de distância – o mais elegante deles. Talvez o roqueiro mais inesperado e indecifrável em seu jeito sem alardes e no sorriso contido.
Quando pensamos nos Stones, os riffs de guitarra e a performance explosiva de Mick Jagger parecem tomar a frente. Acontece que boa parte do jeito da banda tocar deriva daquela batida quase simplista, enigmática, sem exibicionismo. Na canção “Miss You”, famosa por uma gaita que todos conseguem cantarolar, a bateria de Charlie Watts imprime uma elegância invejável. O mesmo vale para “Start me Up”, em que o baterista preenche os intervalos com a sua batida seca e uma assinatura musical que todo musicista sonha para si. Ele era identificável com poucas notas. Segundo o baterista Charles Gavin, Watts conseguiu um lugar raro: “Ele alcançou no instrumento algo muito difícil para todos os músicos, que é a lei básica do ‘menos é mais’.” Mesmo olhando para a bateria isoladamente, Charlie Watts era econômico. Por toda a vida, ele usou o mesmo modelo, uma “Gretsch” sequinha, sem grandes arroubos. A batida dele deu à banda um elemento complicado de se copiar. Afinal, quem ousaria ser tão simples? Na minha canção favorita da banda, “Gimme Shelter”, a entrada da bateria é uma coisa linda dentro de tantas coisas bonitas da música.
De Watts pulo para Paulinho da Viola, cuja quietude emana muita sabedoria e cuja elegância – olha ela de novo – nos convida a abraçar os detalhes. Pois, se vivemos em um mundo onde todos falam ao mesmo tempo, é preciso saber apreciar quem se faz ouvir sem estardalhaço. Paulinho é o meu recanto de quase silêncio cantado. Se para alguns artistas há uma certa atração nossa em aumentar o volume para escutar, com ele sinto que a música parece estar sempre em uma frequência possível de se ouvir até no volume um. É como um mantra. Desde o tom da voz até o jeito de tocar, tudo nele me acalma. As letras mais dolorosas, inclusive. “Desilusão, danço eu, dança você, na dança da solidão”. As palavras são escolhidas em um trabalho de marcenaria fina. Uma outra arte que, aliás, ele também domina quietinho.
A música de Paulinho é atemporal como o seu aprumo. Em 1969, cantava palavras que poderiam ser ditas hoje:
“Me perdoe a pressa.
É a alma dos nossos negócios.
Oh! Não tem de quê. Eu também só ando a cem.
Quando é que você telefona?”
Paulinho é um mar calmo de silêncio, em um universo bravio de falas.
Pequena pausa. No episódio “A Era dos Introvertidos”, do podcast Boa Noite Internet, Cris Dias nos leva por um passeio que recomendo ouvir. O mesmo Cris, em 2012, reflete sobre uma matéria que sugeria que introversão era um tipo de chatice: “Será essa mais uma prova de como nossa sociedade acha que ser extrovertido é sempre certo e ser introvertido é sempre errado?”.
Se uma árvore cai em uma floresta e não há ninguém para ouvir, ela faz barulho? Não sei. Mas houve um tempo em que voltar pra floresta e encontrar o tronco no chão era o suficiente. Há uma ansiedade nos dias de hoje de que o fazer não parece bastante. É preciso mostrar o que se fez, é preciso postar, contar, colocar destaque. Há uma pressão para fazer barulho, para comprovar que caiu o tronco.
Se na música observo os que sabem usar a quietude, na vida não entendo quem esquece o poder compositor do silêncio. Vivemos em uma orquestra em que prevalece um desespero para que escutem o instrumento que você está tentando tocar, pois todos os outros estão tocando ao mesmo tempo e a esperança de um solo é ínfima. Nesse mundo, uma pessoa com um trabalho muito bom pode questionar que aparece de menos. Prefiro sugerir outro prisma: em uma indústria em que a criatividade é uma peça importante, não é emblemático que a grande maioria dos posts de autoelogio disfarçado pareçam ser os mesmos? Essa é uma questão que deixo no mar, que não tem cabelos que a gente possa agarrar. E que ele nos leve para caminhos mais quietos e elegantes de se navegar.
PS: Dedicado ao Pulga, o cão que acompanhou a minha família por quase 14 anos com seu silêncio sábio. E à minha sogra que tanto me ensinou e que me entendia no barulho e no sossego.
*Crédito da foto no topo: iStock
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