Danielle Marques quer retirar a periferia do silêncio e projetá-la para o Silício

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Danielle Marques quer retirar a periferia do silêncio e projetá-la para o Silício

A jovem criou projeto que oferece bolsas para empreendedores negros realizarem uma imersão no Vale do Silício


9 de março de 2023 - 11h33

Danielle Marques é fundadora do projeto Do Silêncio ao Silício (Crédito: Acervo pessoal)

Danielle Marques é fundadora do projeto Do Silêncio ao Silício (Crédito: Acervo pessoal)

Danielle Marques passou sua adolescência ouvindo bandas americanas e assistindo filmes da Disney, mas ela nunca pensou que chegaria um dia em que ela mesma viveria a experiência do sonho americano. A jovem da periferia de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, conseguiu uma vaga para passar algumas semanas no Vale do Silício, aprendendo sobre tecnologia e inovação com os maiores especialistas do assunto no mundo.

O sonho, na verdade, tornou-se um choque de realidade, e a experiência despertou muitas preocupações. Danielle entendeu que a inovação que o Vale estava desenvolvendo poderia acabar com muitos postos de trabalho, o que impactaria diretamente as pessoas da periferia. E pior: essas pessoas não estão preparadas para se reintegrar num mercado de trabalho marcado pela automatização e pela inteligência artificial.

Na volta ao Brasil, a jovem entendeu que mais pessoas como ela deveriam ter acesso a essa experiência. Sendo assim, Danielle Marques, em parceria com a Startse, desenvolveu o projeto “Do Silêncio ao Silício”, que oferece dez bolsas para empreendedores negros realizarem uma imersão no Vale do Silício.

Em entrevista ao Women To Watch, Danielle conta como foi a jornada para realizar a imersão nos Estados Unidos, como surgiu a motivação para criar o projeto e ainda dá dicas para quem quer ingressar no mercado da tecnologia.

Como você conseguiu realizar a imersão no Vale do Silício?

Eu estava fazendo uma transição de carreira na época em que surgiu a oportunidade de ir para o Vale do Silício. Eu trabalhava na área de atendimento no Quinto Andar e tinha acabado de passar no mestrado em Direito, onde pesquisei sobre as startups negras e a falta de investimento. Logo, pensei que poderia me tornar especialista na área de inovação e achei essa imersão.

No entanto, quando comecei a observar quem eram as pessoas que falavam sobre inovação, vi que eram sempre brancos, especialmente homens. Eu fiquei muito revoltada, porque se fala sobre diversidade o tempo todo, mas não compartilham esse espaço conosco. Logo, pensei “qual é a dificuldade de achar uma pessoa preta que fale sobre inovação?”. Se estão faltando pessoas – que eu acredito que não esteja – eu vou me tornar uma especialista em inovação para me tornar a ponte entre esse conhecimento e a periferia, já que essas informações acabam girando em torno da Faria Lima e da Academia.

Quando eu fui pesquisar sobre a imersão, assistir os vídeos e ver a experiência de quem já tinha feito, constatei que apenas pessoas brancas haviam participado. Nesse momento, eu decidi que iria para o Vale do Silício. Peguei o valor que eu tinha juntado e paguei para realizar o programa. Entretanto, quando fui checar os valores para fazer a viagem, percebi que era inviável. Eu não tinha como arcar com o custo.

Um amigo me incentivou a fazer uma vaquinha, mas eu não queria pedir dinheiro na internet para fazer essa imersão. Quando me ligaram para falar que já estavam fechando as turmas, eu fiquei desesperada porque eu já tinha pagado pelo curso. E foi aí que eu pensei “talvez, a única opção seja fazer a vaquinha mesmo”. Então, escrevi um texto contando um pouco da minha história, sobre como eu havia chegado até aqui e divulguei nas redes sociais. O post acabou viralizando e consegui o valor para fazer a viagem.

Como nasceu o projeto Do Silêncio ao Silício?

Depois do Vale, eu voltei ao Brasil com a cabeça fervilhando. Enquanto estava lá, eu escrevia muito, porque eram tantas informações e percepções que eu precisava registrar. Lembro que tivemos uma palestra sobre inteligência artificial e numa das demonstrações, vimos um robô que passava na porta das casas vendendo frutas. Nesse momento, pensei “gente, mas no meu bairro também passa um caminhão cheio de frutas”. No fim, deduzi que muitas das inovações criadas no Vale, na verdade, tratavam-se de um processo de automatização.

Essa percepção me causa muitas preocupações, porque estamos falando da perda de postos de trabalho. Cargos como esses, geralmente, são ocupados por pessoas da periferia, incluindo membros da minha família, que perderiam seus empregos e não seriam inseridas no ecossistema de tecnologia. Isso me gerou uma grande preocupação. Principalmente, no pós-pandemia, quando esse processo de aceleração da inteligência artificial se consolidou. O que vamos fazer com a quantidade de pessoas desempregadas?

Durante a imersão, eu recebia perguntas de pessoas aqui do Brasil questionando como estava sendo a experiência. Elas se interessavam pelo programa, mas quando viam o valor, diziam que era muito inacessível. Depois que eu voltei, muitas coisas aconteceram na minha vida profissional, principalmente pela visibilidade que a viagem teve e comecei a pensar na importância de se criar uma comunidade colaborativa de empreendedores.

Um dos pontos do meu projeto de mestrado era que, muitas vezes, quando as startups vão captar investimento, os fundos investigam a formação dos fundadores. Ou seja, a maioria dos empreendedores que recebem investimento, têm formação em Harvard, Stanford ou MIT. Entretanto, quando você observa a população negra mundial, apenas 5% têm acesso a uma universidade americana. Mesmo assim, na hora de captar investimento, é exigido uma experiência internacional.

Com esse entendimento, eu pensei “Por que não possibilitar que essas pessoas também tenham esta experiência?”. A imersão, teoricamente, é um período curto, mas o suficiente para fazer grandes transformações. Além disso, ela também possibilita a criação de redes, porque uma das coisas que mais afetam os empreendedores negros é a falta de conexão.

Nesse momento, chamei alguns amigos para me ajudar a desenvolver o projeto, e foi assim que nasceu. Em parceria com a StartSe, resolvemos fechar um pacote de 10 bolsas para levar empreendedores este ano. Eu quero muito que essa seja a primeira edição de muitas. Acho que essa experiência é muito importante para quem é empreendedor, então, preferimos focar esta primeira edição apenas nessa categoria, mas talvez as próximas sejam para pessoas como eu, que estão numa transição de carreira ou que querem estudar sobre a área de tecnologia.

Você comentou que fez uma mudança de carreira da administração para tecnologia. Como foi tomar essa decisão? Teria algum conselho para outros jovens que querem entrar na tecnologia?

Eu trabalho desde os 14 anos e a maioria das minhas experiências foram em call center. Quando tive a oportunidade de entrar no Quinto Andar, fui contratada para a área de atendimento, onde eu já tinha muita experiência. Em certo momento, percebi que o mercado de tecnologia estava superaquecido e que faltavam profissionais para trabalhar na área. Eu já não queria mais trabalhar com atendimento, que geralmente é a porta de entrada para o mercado de trabalho para pessoas como eu. Mas, não queria ficar só na porta de entrada, eu queria alçar novos voos.

Analisando o mundo corporativo, de modo geral, entendi que ele exige várias habilidades de nós, principalmente as soft skills. Contudo, acredito que não existem pessoas mais aptas a ocupar alguns cargos do que pessoas da periferia, porque a maioria das habilidades requisitadas no mercado de trabalho são comuns no nosso dia a dia para a nossa sobrevivência.

Logo, entendi que a inovação era uma área que fazia todo sentido para mim. A periferia é muito potente nesse sentido, porque estamos o tempo todo criando por conta da necessidade de sobrevivência. Hoje em dia, trabalho com diversidade e inclusão em uma empresa de tecnologia. Não necessariamente na área de inovação, mas a cadeira que ocupo hoje exige que eu seja uma pessoa criativa, porque posso pensar em projetos que incluam pessoas como eu, por exemplo.

O meu conselho para quem quer entrar na área é buscar quem são as referências, veja o que essas pessoas estão fazendo, os lugares que elas estudaram, os assuntos que aprenderam. Hoje em dia, por exemplo, as mulheres na tecnologia se reúnem em muitos grupos de discussão.

Sempre digo que é muito importante pedir ajuda e indico muito buscar mentores, principalmente da área em que você tem interesse. Portanto, se você está entrando como júnior numa área, procure uma pessoa plena ou sênior, ou um especialista para te auxiliar. Além disso, use as redes sociais. O LinkedIn foi uma fonte muito importante, não só de conhecimento, mas também para criar essas redes. Sem ele, acho que a vaquinha não teria acontecido e a possibilidade de oferecer isso para outras pessoas também não teria dado certo.

Você já teve algum tipo de sentimento de autossabotagem? Como lida com essa situação e quais dicas dá às mulheres que se sentem assim nos projetos, áreas e lugares em que atuam?

Constantemente sou atravessada por essa síndrome, talvez por não ver tantas pessoas próximas no estágio em que estou, porque, de certa forma, estou num processo de ascensão social e já consegui me movimentar para vários lugares que eu nunca nem imaginei.

Até enquanto eu pensava nesse projeto e ao perceber a proporção que está tomando – isso me assusta um pouco, porque é uma grande responsabilidade. Será que eu realmente estou pronta? Porém, se eu começar a pensar sobre o que eu já passei na vida, vejo que já enfrentei desafios muito maiores do que criar um projeto. Nesses momentos, o que era para ser positivo, acaba me levando a esse lugar de não merecimento.

Para lidar com isso, eu tento encontrar forças em mim mesma. Uma das coisas que fiz foi colocar no papel todos os marcos da minha vida. De onde eu saí, o que eu passei, o que eu estudei, o que eu fiz pra entrar na universidade, por que eu tive que ingressar no mercado de trabalho cedo. Por exemplo, na época da graduação, eu trabalhava durante o dia em call center e à noite em festas. Por isso, tento me apegar à minha história e entender que eu não vim parar aqui do nada. Isso tem sido um ponto de apoio muito importante, até para eu não cair em comparações com outras pessoas que não têm relação com a minha realidade.

É um desafio, mas o que tem me ajudado é olhar para minha história com orgulho. Porque eu penso “pô, eu limpava o banheiro da balada enquanto os meus amigos da faculdade estavam curtindo a festa. E hoje em dia, eu tenho a possibilidade de curtir a balada com eles”. Eu tento olhar pra essa Daniele e falar “que bom que você não desistiu, que você teve coragem”.

Quais mulheres inspiradoras você segue, lê e observa? Como elas te inspiram?

Uma pessoa que eu sou completamente apaixonada é a Viola Davis. Quando li o livro dela, me vi ali, principalmente em relação à infância. Apesar de não ter passado nem perto do que ela viveu em relação à fome e à miséria, mas quando eu era criança, sofri violência física e psicológica na escola, por conta de racismo. Ela conta isso no livro dela, por isso me identifiquei.

Quando falamos sobre a síndrome da impostora, penso “passei por coisas muito piores”. Então, não é um caos no dia de trabalho que pode me derrubar, porque eu sou uma criança que enfrentou violência física na escola por ser preta. Em vista disso, olhar uma mulher bem sucedida mundialmente, como a Viola Davis, faz com que eu veja que as coisas não são impossíveis, sabe? E que, de alguma forma, mesmo sendo ruim, temos que usar nossas dores e transformá-las em potência.

Por fim, tem alguma dica de séries, filmes, livros e/ou músicas que consumiu recentemente e te fizeram refletir sobre a condição e o papel das mulheres?

Um livro que foi um divisor de águas para mim foi “O Ano em Que Disse Sim”, da Shonda Rhimes. Eu era uma pessoa que falava não para muita coisa e quando comecei a ler o livro dela, fiquei indignada. Eu pensava “a mulher escreveu as maiores séries de sucesso dos últimos tempos e não gosta de dar uma entrevista? Que absurdo!”. No entanto, quando eu olhava para a minha própria história, percebi que eu também não gostava de falar. Dessa forma, conforme eu fui observando as mudanças que ocorriam na vida dela, comecei a pensar “mas, e se eu falasse sim?”.

Eu li esse livro na época em que eu estava pensando em fazer uma vaquinha para a viagem. A partir do momento que eu comecei a dizer sim para as coisas que me desafiavam, elas foram acontecendo também. Então, eu indico pra todo mundo, acho que é uma leitura obrigatória.

Conta como será o processo seletivo para as bolsas de imersão no Vale do Silício.

Os pré-requisitos são: ser um empreendedor negro que já tenha algum negócio com base tecnológica, o que significa ter um negócio que seja escalável. Também pedimos que a pessoa tenha um básico do inglês, ou que possua disponibilidade para fazer um intensivão durante o período pós-seleção.

Conseguimos um patrocinador, a VOX, que ofereceu os cursos de inglês, mas a pessoa precisa ter a disponibilidade de fazer um intensivão. E, por experiência própria, é muito difícil chegar nos Estados Unidos sem falar nada de inglês.

A primeira fase consiste num formulário e um vídeo da pessoa contando um pouco do negócio e de quem ela é. A próxima fase é uma entrevista online. Após essa etapa, vamos liberar o resultado final dos selecionados. A lista será fechada no máximo até o dia 1º de maio.

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