Assinar
Publicidade
Opinião

Senhoras Fé e Graça

Estamos falando de algo que transcende o entendimento de crença comum e vai para uma tradição que simplesmente define nossa identidade. Estamos falando desse coletivo de gente que é do Círio, o Círio de Nazaré


7 de outubro de 2022 - 14h23

Foto do acervo de Martha Letícia do Círio de Nazaré de 2019, em Belém, Pará (Crédito: Arquivo Pessoal)

Meu primeiro encontro com a Sra. Fé foi há muito anos, na verdade há mais de dois séculos. Tenho certeza que uma coisa tão forte passa pelo DNA por meio da nossa ancestralidade. Estamos falando de algo que transcende o entendimento de fé comum e vai para uma tradição que simplesmente define nossa identidade. Estamos falando desse coletivo de gente que é do Círio, o Círio de Nazaré.

E, sim, é necessário falar dele no plural porque é uma experiencia coletiva. Tem vários aspectos dessa festa popular que acontece em todos os outubros há quase 230 anos que nos fazem sentir algo extraordinário, eu vou contar alguns para vocês.

Primeiramente, o começo de tudo. Era uma vez um caboclo chamado Plácido que achou uma imagem de Nossa Senhora De Nazaré. Ele levou a imagem para casa, e no dia seguinte ela voltou para o mesmo lugar que ele a havia encontrado. Pronto, estava construído o primeiro símbolo dessa festa. O percurso dessa imagem se transformou numa procissão que em um dia vai de um canto para o outro, e no dia seguinte faz o percurso inverso. Isso se repete há mais de dois séculos.

A festa começa a acontecer dentro de nós, quando outubro se avizinha. Os combinados em família já ficam diferentes, há uma programação pensada com antecedência, as comidas típicas são planejadas, organizadas, preparadas. O cheiro da cidade muda, a cor das ruas, os enfeites, as pessoas. Seus sorrisos são mais largos, mais fartos, mais fáceis, mais doces.

O sulco de tudo isso é concentrado em 3 dias: sexta, sábado e domingo. Cada um olha para uma vista da festa, que tem diversos compartimentos. É um salão imenso de magia pura, um salão que envolve a cidade inteira. Cada ano todos têm a oportunidade de olhar para um compartimento novo, um lugar desse salão de magia que ainda não foi visitado antes, e a visita tem sempre muitas companhias. São dois milhões e meio de pessoas envolvidas na festa, fora as que só observam. Que baile!

E com todo esse mar de gente, não se pode negar que a egrégora que se forma é completamente extraordinária. Se duas pessoas já formam uma egrégora que é essa energia de conexão, imaginem essa multidão, essa força incrível desse coletivo de gente. E aí, claro, temos uma experiência superlativa.

Contando sobre as vistas de que eu mais gosto, temos uma que chama o Auto do Círio. Na sexta à noite, artistas de teatro e circo da cidade, sejam os renegados, sejam as prostitutas, sejam os famosos, fazem um desfile em homenagem à Ela. O Círio Fluvial acontece no sábado pela manhã. Essa etapa é uma procissão de barcos enfeitados, grandes, pequenos, imensos – PS. vou voltar nesse momento daqui a pouco, porque é simplesmente um dos meus dois preferidos. Logo após a chegada da Santa no porto, saem carros e motos numa procissão motorizada, acompanhando Ela. Logo após a saída, outros artistas, agora os que ficam à frente dos musicais, fazem uma romaria de música e desfile de personagens, pernas de pau, bois, arte.

No sábado à noite, tem a primeira parte da ida e vinda Dela, remetendo à história do Plácido, onde Ela vai de uma igreja para a outra. Logo após a passagem Dela por um determinado ponto, começa mais uma festa profana, onde o prefeito da cidade homenageia o gay destaque da cidade durante o ano, e entrega para ele o troféu Viado de Ouro. Essa tradição acontece há décadas. É inclusão pura nesse delicioso coletivo de pessoas.

O domingo é o ápice e o último dia da festa de três dias. É quando acontece a volta da imagem da Santa para a Basílica. Na verdade, ela fica numa praça bem na frente da igreja, porque seria impossível abrigar a multidão que a visita por mais duas semanas.

Martha no Círio de Nazaré, em 2019 (Crédito: Arquivo Pessoal)

E agora, para falar dos meus momentos preferidos, devo dizer: o que torna essa festa o superlativo dos superlativos são os símbolos.

No Círio fluvial, na procissão de barcos, a Santa vem numa fragata da marinha. Ela vem acompanhada do arcebispo, do governador e das demais autoridades que estejam na cidade. Em terra, para esperá-la, estão homens uniformizados em seus trajes de gala mais elegantes. São os dragões da independência. Eles estão com o traje completo, capacete com aquela linha de pelos vermelha, roupa branca, espadas e tudo o mais. Eles se enfileiram para receber com honras de chefe de Estado Ela, a poderosa, a incrível Nossa Sra. De Nazaré. Reparem que é o Nossa no nome Dela que a torna sagrada, a torna mais que uma mulher, mais que a mãe de Jesus.

Simbolicamente, o governador e o arcebispo transferem os poderes do Estado para Ela, para essa mulher sagrada, essa mãe, representando todo o feminino que nos abraça e é reverenciado no seu apogeu. A essa altura estou em meio a lágrimas todos os anos, e posso estar acompanhada de ateus, crentes ou descrentes, que tenho companhia para esse choro. Foi aí que eu me deparei pela primeira vez com a Sra. Fé. Ela é vistosa, transcendida, expandida, amplificada.

Meu segundo momento preferido é quando no domingo, durante a procissão, eu paro em algum ponto e espero Ela passar por mim. Ela para em muitos lugares e, coincidência ou não, sempre para na minha frente em algum momento, e nessa altura da experiência acontece uma outra mágica: sinto em mim um vulcão em erupção, em que a lava quente vai subindo e tomando conta de todo o espaço até explodir. Eu me sinto quase sufocar com a força da energia que experimento. É a hora em que eu visito a Sra. Graça Divina, num cômodo do salão repleto das pessoas que estão vindo do rio dos acreditantes, e atravessaram como eu o portal que se forma nesse momento.

Por três dias eu renovo em mim a crença de que absolutamente tudo é possível. Numa harmonia de grupo, de unidade, que junta todos como iguais. Ufa.

Como vocês já devem suspeitar, a festa vai para muito além da questão religiosa. Essa energia concentrada, plasmática, absolutamente palpável abre um portal para um êxtase que nem há como usar as palavras que existem para descrever. Acho que estamos num momento em que precisamos muito acreditar, então eu convido vocês a um dia, um dia qualquer de um outubro qualquer, viver conosco essa magia.

Publicidade

Compartilhe

Veja também

  • Quais são as tendências de estratégia para 2025?

    Quais são as tendências de estratégia para 2025?

    Lideranças femininas de agências, anunciantes e consultorias compartilham visões e expectativas para o próximo ano

  • Como as mulheres praticam esportes no Brasil?

    Como as mulheres praticam esportes no Brasil?

    Segundo relatório "Year in Sport", da Strava, corrida é o esporte mais praticado globalmente e atividades físicas em grupo crescem 109% no País