Barbara Sturm: Mulheres na direção
À frente de selo que apoia diretoras de filmes, a cineasta luta pela representatividade feminina no cinema brasileiro inspirada pelas mulheres de sua vida
À frente de selo que apoia diretoras de filmes, a cineasta luta pela representatividade feminina no cinema brasileiro inspirada pelas mulheres de sua vida
Michelle Borborema e Barbara Sturm
16 de março de 2022 - 6h30
A cena não foi incomum no Brasil: uma menina dos anos 1990 liga a tevê e se apaixona por um castelo habitado por uma cobra falante, uma gralha de nome Adelaide, uma garota forte chamada Biba e a tia Morgana, poderosa feiticeira de seis mil anos que esteve presente em vários momentos da história, inspirando seu neto-sobrinho Nino com seus contos. Para a cineasta Barbara Sturm, 32 anos, não foi diferente. Castelo Rá-Tim-Bum, da roteirista Anna Muylaert, era o programa que estava passando quando ela ligou o aparelho de casa pela primeira vez.
“Sempre me inspirei por mulheres. Desde criança, sou muito fã da Anna, ela tem obras que transformaram minha vida. Quando algo é escrito por uma mulher, há representatividade, a gente se vê na história. Mas isso não quer dizer que só uma mulher vai entender”, diz Barbara.
Anna Muylaert não mudou a vida de Bárbara apenas na infância. Anos depois, em 2015, trabalharam lado a lado para transformar o longa Que Horas Ela Volta? num grande sucesso de público, um filme marcante para toda uma geração de brasileiras. Protagonizado por Regina Casé, ele acompanha os conflitos de uma empregada doméstica no Brasil com seus patrões de classe média alta. O filme representou uma transformação no retrato do universo feminino pelo cinema brasileiro, embora o padrão da indústria cinematográfica persistisse nos bastidores do projeto: a equipe era composta por muitos homens e poucas mulheres.
O esforço de Barbara e Anna valeu a pena: Que Horas Ela Volta? foi um dos poucos filmes de arte com grandes números de bilheteria, atingindo cerca de 500 mil pessoas apenas no Brasil. O motivo, para Barbara, foi claro: as duas lutaram pelo resultado final, mesmo diante de um time que nem sempre entendia como elas a mensagem do longa. “É um filme empoderador sobre o lugar da mulher, principalmente daquela que não quer ser submissa, independentemente do lugar em que está.”
Da infância à fase adulta, Barbara sempre se inspirou por mulheres e pela arte. Embora o pai, André Sturm, seja uma figura importante no cinema brasileiro, ela garante que a mãe, Alexandra Paioli, é ainda mais cinéfila e a influenciou como poucos. Criou a futura cineasta sozinha, em Campinas, o que inspirou a filha a defender os direitos das mulheres desde cedo. Barbara saiu da casa da mãe com 12 anos, quando foi morar com a avó e, em seguida, aos 15, com o pai. E foi ela quem decidiu fazer todas essas mudanças. “Fui criada em um ambiente onde nunca achei que o feminino era ruim. Pelo contrário, sempre tive liberdade de ser quem quisesse, de ter opinião. E fui muito atrás disso na vida”.
A personalidade livre de Barbara transparece em seu caminho profissional. Ela fez um ano de faculdade de moda, e durante o período começou a trabalhar na Pandora Filmes, empresa do pai, e se apaixonou completamente pelo audiovisual. Foi aí que decidiu estudar cinema e iniciou a carreira como diretora de fotografia, posição em que o preconceito de gênero imperava. “Ninguém me levava a sério. Muitos assistentes eram homens e as pessoas se referiam a eles, não a mim. Mas comecei a gostar desse desafio”.
Depois de um tempo, Barbara decidiu ir para a área executiva da indústria cinematográfica e dominar as estratégias de público e distribuição. Passou por cursos nos festivais de Veneza e de Berlim, onde encontrou sua turma. Em seguida, trabalhou oito anos como programadora no Cine Belas Artes e na Pandora Filmes, distribuindo filmes internacionais no Brasil.
CINEMA, ATIVISMO E MARKETING
Após comandar a distribuição de Que Horas Ela Volta?, Barbara despediu-se da Pandora Filmes com o filme Olmo e a Gaivota, de Petra Costa, sobre uma atriz de teatro que está grávida e é excluída da turnê do espetáculo. Na época, havia uma campanha forte para endurecer as leis contra o aborto e, diante disso, a equipe decidiu criar o movimento “Meu Corpo, Minhas Regras”, que não serviu apenas como marketing do filme, mas como campanha social bem-sucedida. “Muitas pessoas fora do circuito de arte conhecem o filme e a campanha. E eu saí muito feliz do projeto, entendendo muito bem qual era o meu papel. O que eu conseguia fazer, não apenas o que eu queria”, diz.
O resultado motivou Barbara a trabalhar em uma agência de marketing digital, em 2016, pois queria entender melhor sobre audiência e redes sociais. Em 2017, ingressou como curadora na Elo Company, distribuidora pequena de filmes brasileiros no mercado internacional. Seu desafio era promover a diversidade do cinema brasileiro.
“Nessa posição, entendi que conhecemos muito mais Miami e Paris do que Cuiabá, por exemplo. Para conseguir acessar as pessoas das diferentes regiões do Brasil e entender os projetos delas, precisava vivenciar isso de verdade”. Foi aí que Barbara começou a viajar para inúmeros eventos de cinema no Brasil, criou laços com diferentes camadas da indústria e do país e desenvolveu um curso de distribuição, para democratizar o conhecimento desse assunto pouco acessível.
SELO ELAS
Em 2018, início da consolidação do retrato do universo feminino no audiovisual, Barbara desenvolveu o selo ELAS, iniciativa da Elo Company de apoio a cineastas brasileiras. “Estudei por meses para entender as necessidades das mulheres que dirigem filmes. Não tanto a Anna Muylaert ou a Laís Bodansky, mas principalmente aquelas que querem fazer um segundo filme e continuar na carreira. E aí entendi que a mulher diretora, função máxima artística, enquanto busca oportunidades e financia seu longa, acaba se desenvolvendo em outra função [do audiovisual] para sobreviver.”
Foi com esse olhar sobre a necessidade de empoderar diretoras de diferentes regiões do Brasil a lançarem suas obras e seguirem na carreira que Barbara criou o selo, que funciona como uma incubadora. O ELAS contrata diversos projetos de diretoras, e todo ano Barbara seleciona aqueles com originalidade, marca e potencial, independentemente do tamanho, para passar por consultorias realizadas por um grupo bastante eclético de profissionais de audiovisual. Sempre há um projeto das cinco regiões do Brasil, diretoras iniciantes e consagradas, e também são contemplados os gêneros de documentário e ficção. Os consultores são voluntários e trabalham individualmente, analisando o material e conversando diretamente com cada diretora. Em cinco anos, o selo atendeu 42 filmes dirigidos por mulheres e lançou 8 filmes.
Entre as últimas produções escolhidas pelo ELAS está o longa Coração de Lona, dirigido pela pernambucana Tuca Siqueira.
NO TIME DAS MULHERES
Para Barbara, o que motivou a criação do selo ELAS foi o cenário de representatividade das mulheres no cinema. De acordo com a empresa, embora mais da metade da população brasileira seja mulher, apenas 19% dos filmes são dirigidos por elas, 18% têm elas como diretoras de roteirista, 12% diretoras de fotografia e 34% produtoras executivas. “Eu não me via em histórias. Quando assisti a Capitã Marvel, por exemplo, senti algo que não havia sentido nem antes nem depois, pois estamos falando de uma super-heroína de verdade. Ela finalmente não é o clichê do feminino, não está de saia como a Mulher-Maravilha, não precisa beijar alguém na boca. E tem piadas escritas por uma mulher.”
Mas não é apenas isso que motiva Barbara a seguir com o projeto. “Sempre fui uma ativista no sentido feminista mesmo antes de saber o que era isso. Era questionadora do papel da mulher, da própria Disney, que eu adoro. Mas quando cresci e descobri que os homens matam as mulheres, as suas mulheres, dentro das suas casas, e que isso acontece a cada sete minutos, isso teve um reflexo muito forte em mim. No passado, perdi uma amiga vítima de feminicídio. Hoje em dia, vejo o quanto isso já me movia e como me move ainda mais”.
Uma das maiores dificuldades que Barbara encara na vida como mulher é o medo de ser alvo, por isso diz que se prepara muito para tudo. “Ser mulher é um perigo, então estou sempre me prevenindo de algo ruim, tanto na vida pessoal como na profissional. O próprio selo ELAS foi criado para evitar que os filmes brasileiros continuem sendo dirigidos por poucas mulheres”.
Se muitas das histórias da Tia Morgana eram aquelas contadas nos livros ainda por uma perspectiva masculina, em Que Horas Ela Volta? e Olmo e a Gaivota elas são contadas por mulheres, e isso representa uma grande mudança nas telas e um reflexo da união feminina.
“A grande transformação é que nós, mulheres, entendemos que éramos colocadas umas contra as outras e que não iríamos para lugar algum assim. Em vez de existir para chamar a atenção da outra, começamos a existir para se identificar na outra. Dar a mão, ter mais cuidado. Eu quero estar no time das meninas, quero ser sensível, sincera, ter minhas características femininas que todos temos e não precisar mais ser um menino em certas situações”, completa.
Mas o movimento está apenas no começo. “No ano passado, as mulheres estiveram no Oscar, Cannes, Veneza, Berlim, conseguimos prêmios máximos, dois filmes da Marvel dirigidos por mulheres. É superimportante, considerável, mas acho que é apenas o início de tudo. E assim funciona com o selo ELAS. Queremos que os filmes de mulheres façam resultados melhores. Para ganharmos mais, para a diretora ganhar mais e fazer o próximo filme. Não é uma coisa pontual: é a mudança de toda uma indústria,” finaliza.
Se ainda falta um longo caminho para a equidade de gênero, são iniciativas como as de Barbara que nos lembram do mais importante: no cinema e na vida, as mulheres merecem estar cada vez mais na direção.
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