Coffee Break: Ama teu vizinho
Não brigamos com a sogra do nosso amigo, mas com a nossa. Da mesma forma, os executivos brigam bastante com os concorrentes, mas brigam ainda mais entre si
Não brigamos com a sogra do nosso amigo, mas com a nossa. Da mesma forma, os executivos brigam bastante com os concorrentes, mas brigam ainda mais entre si
Meio & Mensagem
24 de novembro de 2014 - 9h34
Por Marcos Caetano (*)
Numa noite vadia de segunda-feira, nada melhor do que ir à estante, passear o olhar e a saudade pelos velhos discos de vinil, escolher um deles e, após um vigoroso sopro de trompetista para arrancar a poeira de décadas, colocar o anacrônico objeto para tocar no não menos anacrônico equipamento de som. O LP escolhido pertence a uma banda nacional do início dos anos 1970: Sá, Rodrix e Guarabira. Cabe lembrar que o saudoso Zé Rodrix, que nos deixou em 2009, era do ramo. Do ramo da música, evidentemente, mas também do nosso ramo. Compositor de mão cheia, ele deixou na memória afetiva do País jingles eternos como “Só tem amor quem tem amor pra dar”, feito para a Pepsi a pedido da JWT.
A primeira faixa que ouço tem o mesmo título desta crônica. E a letra diz: “Ama teu vizinho como a ti mesmo. Mesmo que ele faça barulho, mesmo que ele acorde as crianças de madrugada. Ele também gosta de silêncio e paz, ele também quer sossego. Mas acontece que ele vive num horário diferente do teu”. Estou falando de coisas muito antigas… Basta dizer que outro verso da canção é assim: “Ama teu vizinho como a ti mesmo, mesmo que ele seja um grilo na comunidade”. Não sei o que é mais bocomoco: a gíria grilo, o ripongo conceito de comunidade — ou a expressão bocomoco que acabo de usar. A expedição arqueológica à estante de vinis veio a calhar, já que a repercussão do último texto, sobre as difíceis relações nas redes sociais, atiçou a vontade de entender a antropologia da vizinhança.
Há muitos anos, quando ciscou pelo Brasil para fugir do inverno portenho, o grande escritor argentino Adolfo Bioy Casares se aventurou por alguns dos nossos programas de entrevistas. Num deles, perguntado sobre o porquê de tanta rivalidade entre Brasil e Argentina, respondeu que nós, seres humanos, somos assim mesmo: preferimos odiar quem está mais à mão. Não brigamos com a sogra do nosso amigo, mas com a nossa. Da mesma forma, nas empresas, os executivos brigam bastante com os concorrentes, mas brigam ainda mais entre si mesmos. Concordo com Casares. Realmente, fora alguns modelos de vestido da Björk, jamais nutri grandes antipatias pelos islandeses. Também não chego a ter particular implicância com os times de futebol de Burkina Faso ou com os halterofilistas do Uzbequistão. Mas botem uma bola de futebol para rolar na grama e uns cabeludos com camisa celeste e branca do outro lado e, creiam-me, vocês conhecerão o lado mais sinistro deste cronista. Escrevo e já me apresso em corrigir: concordo com Casares — apesar de ele ser argentino.
Encerro com uma fofoca de vizinhos. Quando ainda morava em apartamento, tinha um cara no andar de cima que, quase diariamente, dava um ataque cinematográfico de gritos e xingamentos, entre quatro e cinco da manhã, horário no qual sua esposa costumava voltar depois de encher a cara. Cansado de ser acordado pela pancadaria e de acompanhar o fabuloso progresso que meus filhos vinham fazendo na ancestral arte dos palavrões, decidi conversar com o vizinho. Na verdade, não falei com ele. Falei foi com a esposa: “Minha senhora, não tenho nada a ver com a sua vida e coisa e tal, mas as crianças precisam dormir, sabe como é…” Dali em diante a mulher passou a chegar da farra às 6 da manhã, e o meu serviço grátis de despertador — o quebra-pau do 602 — jamais foi tão eficiente e oportuno.
A convivência pacífica é sempre possível, basta tentar. Agora, preciso encerrar porque a campainha acaba de tocar. Era o vizinho da casa ao lado, reclamando que a música que estou ouvindo é muito esquisita, muito velha e, principalmente, muito alta. Ele deve viver num horário diferente do meu.
* Marcos Caetano é diretor global de comunicação corporativa da BRF
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