Comunicação

Movimento “Sephora Kids” acende alertas aos pais e à indústria

Fascínio da geração alpha pelo mundo da beleza levanta alertas sobre saúde física, mental e sobre adultização

i 8 de outubro de 2025 - 6h00

Sephora kids

73% das meninas com idade entre 11 e 17 anos afirmaram ter sido impactadas com propagandas sobre maquiagem ou outros produtos de beleza, segundo pesquisa da da TIC Kids Online Brasil (Crédito: cred9nong)

Mais de 80 mil crianças, pré-adolescentes e seus pais lotaram o shopping American Dream, em Nova Jersey, nos Estados Unidos, na segunda-feira, 6, para o lançamento da loja pop-up da marca de cuidados com a pele Sincerely Yours, da influenciadora digital de 15 anos, Salish Matter.

A comoção foi tamanha que algumas crianças e seus pais chegaram às 5 horas da manhã e acamparam esperando o evento começar. O público, formado principalmente por jovens meninas, se apertou entre os corredores do shopping para acompanhar o evento.

Apesar do frenesi em torno do lançamento (veja abaixo), o evento acabou gerando comentários negativos por parte de alguns participantes por conta de sua falta de organização e planejamento.

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Em entrevista ao Ad Age, Jordan Matter, pai de Salish, influenciador e cofundador da marca de skincare, revelou que uma quantidade inesperada de pessoas compareceu ao evento. “Ninguém poderia ter previsto aquele número de pessoas. Os seguranças começaram a dizer que, por questões de segurança, tínhamos que interromper o show. Salish saiu brevemente e depois foi escoltada para fora”, completou.

Esse cenário resume um pouco de uma tendência que tem crescido e se consolidado nas redes sociais no último ano: as “Sephora Kids” (crianças Sephora, em tradução livre), movimento no qual crianças e pré-adolescentes postam vídeos mostrando suas rotinas de skincare e autocuidado usando produtos de diversas marcas, como The Ordinary, Drunk Elephant, Glow Recipe e Fenty Skin. O nome “Sephora Kids” vem do fato de muitas dessas crianças irem à Sephora para adquirir ou testar esses produtos.

O movimento indica não só uma tendência, mas uma mudança de comportamento da geração alpha, uma vez que muitas dessas crianças têm, inclusive, passado a pedir produtos de cosméticos e cuidados com a pele a seus pais em vez08 de brinquedos.

Apesar de parecer inofensiva, essa mudança de comportamento acende alguns alertas. O primeiro deles se refere a uma questão de saúde. Muitos desses produtos podem ter ativos que não são indicados, de forma, geral para a pele das crianças.

A doutora Marjorie Uber Iurk, do Departamento de Dermatologia da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), reforça que existem riscos da aplicação local, como alergias e irritações, mas também riscos por essa absorção dos ingredientes dos cosméticos para corrente sanguínea, podendo agir em outros órgãos.

No entanto, a doutora não descarta o uso de cosméticos por jovens dessa faixa etária de 8 a 12 anos. “Todas as crianças devem ter um cuidado adequado com a pele e os cosméticos são indicados em todas as idades”, pontua. Porém, enfatiza que é preciso saber quais usar e que hidratantes, produtos de higiene, sabonete, shampoo, condicionador, protetor solar, em alguns casos, repelentes são os mais indicados para essa faixa etária.

A doutora, inclusive, reforça que todos os cosméticos comercializados no Brasil, regulamentados pela Anvisa, têm ingredientes liberados. “Para ser um produto infantil, ou seja, para menores de 12 anos, ela deve cumprir pré-requisitos estabelecidos pela Anvisa na questão da segurança”.

Apesar disso, Marjorie destaca a importância de os pais lerem os rótulos dos produtos. “O recado é aprender a ler os rótulos e conhecer sobre os ingredientes cosméticos um pouquinho a cada dia, porque não é uma coisa fácil de começar a fazer”. A doutora, inclusive, revela que já existem ferramentas que ajudam nisso. Ela mesmo lançou, no mês passado, o aplicativo Rótulo Seguro Kids, que ajuda a ver a lista dos ingredientes cosméticos numa classificação de risco.

Faceta da adultização

Um segundo alerta que essa tendência desperta pode ser mais perigoso. Isso porque ele envolve saúde mental, pressão estética precoce, comparação social, estímulo a hábitos consumistas. Neste sentido, Maria Mello, líder do Eixo Digital do Alana, grupo de impacto socioambiental que visa promover um mundo melhor para as crianças, enfatiza que esse fenômeno representa uma faceta da adultização, tema que tem sido muito comentado recentemente a partir do vídeo do influenciador Felca.

“Adultização é uma espécie de violência, porque é um processo que tira a criança da fase em que ela se encontra, uma fase que é peculiar em termos de desenvolvimento biopsicosocial e a joga para uma outra fase, ignorando essas peculiaridades”, complementa.

Essa violência se manifesta de diversas maneiras e de forma muito conectada à publicidade, de acordo com a executiva. “Esse exemplo de publicidade de maquiagem, dessas trends de skincare são bastante fortes em relação a esse processo de adultização”, frisa.

Além disso, Maria entende que a “Sephora Kids” é um fascínio que não nasce espontaneamente, mas é resultado direto da exposição precoce a conteúdos com apelo comercial, muitas vezes, de maneira disfarçada, de marketing disfarçado a partir das trends, em que as crianças e adolescentes acompanham influenciadores e vão buscar reproduzir os seus comportamentos de consumo que de fato não correspondem à sua fase de desenvolvimento.

As redes sociais têm relação com isso, segundo Maria, à medida em que o design e os algoritmos são pensados para privilegiar determinados conteúdos que tendem a ter apelos variados, nesse caso, apelo estético forte, muito repetitivo que colocam os jovens dentro de uma dinâmica de retenção da atenção, e criam, por conseguinte, padrões de desejo desde muito cedo.

“Há vários estudos que mostram que esse tipo de exposição constante tende a aumentar os níveis de ansiedade, de insatisfação com o próprio corpo e isso pode ser um caminho para que distúrbios alimentares se manifestem, depressão na adolescência”, alerta a executiva.

Essa pressão estética acaba tendo ainda mais impacto sobre as meninas, muito por conta da publicidade. Uma pesquisa de 2021, da TIC Kids Online Brasil, mostrou que 73% das meninas entre 11 e 17 anos afirmaram ter sido impactadas com propagandas sobre maquiagem ou outros produtos de beleza. Além disso, 71% das meninas relataram que, na maioria das vezes, a ação publicitária aparece em conteúdos que ensinam como usar um produto.

Apesar disso, Maria frisa que, atualmente, no Brasil qualquer consumo dirigido por publicidade para crianças é uma prática antiética, ilegal e abusiva. “Regulamentação, autorregulamentação, enfim, ECA, CDC, Resolução 63 do Conanda determinam que a publicidade dirigida a criança de até 12 anos é abusiva e ilegal no nosso País”, complementa.

Além da existência de campanhas feitas de maneira direta para crianças e adolescentes, Maria afirma que, atualmente, há formas mais sutis de afetar esse público a partir do marketing desse tipo de produto. “Quando você tem esse uso de influenciadores, jovens, linguagens visuais muito coloridas, a própria viralização de desafios, essas trends todas, que não tem nenhum olhar para quem esses conteúdos estão afetando, você acaba de uma maneira muito poderosa influenciando esse público que é, mais uma vez, repito, vulnerável diante desse tipo de apelo”, fortalece.

Para coibir fenômenos como as “Sephora Kids”, na visão de Maria, é preciso que haja mais rigor na fiscalização, principalmente no ambiente digital. “Autorregulação, infelizmente, funciona como uma cortina de fumaça, as sanções não estão claras, não temos como fazer denúncias nos mecanismos internos que não sejam, de fato, determinados por alguma norma”, salienta.

Além da responsabilidade corporativa genuína, a executiva ressalta que é preciso ter legislação e decisão do sistema de justiça a esse respeito desse tema para garantir que a proteção de crianças e adolescentes prevaleça sobre interesses comerciais.

Bruno Pompeo, coordenador do curso de Publicidade e propaganda da ECA, concorda. “É fundamental que haja algum tipo de controle, limitação sobre esse tipo de comunicação, porque estamos falando de um público vulnerável, de um público que não tem o seu discernimento plenamente desenvolvido para compreender as nuances que são típicas da publicidade ou as estratégias nem sempre claras do marketing”, finaliza.