A cada época, seu gesto

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Opinião

A cada época, seu gesto

Trabalhar demais já foi motivo de admiração. Hoje é sintoma de falta de disciplina e organização. Para entender como a ciência e a consciência nos fazem mudar critérios de interação social e adquirir novos hábitos, convido o leitor a um exercício de imaginação


11 de setembro de 2018 - 10h19

Crédito: RuslanDashinsky/iStock

Pais de pessoas da minha geração viviam com um cigarro na mão. Lembro-me de poder cortar o ar com uma faca nas reuniões de amigos e família na minha casa.

O cigarro não é apenas um produto, é um recurso visual e cênico das pessoas de uma era. O acender do cigarro, o tempo da resposta prolongada por uma tragada pensativa, a liberdade e modernidade que o cigarro transmitia, tudo isso vestiu uma geração. Pelo menos até que a ciência interveio e mostrou as consequências brutais do hábito de fumar.

Minha geração de jovens adultos já encarava o cigarro ou com parcimônia ou com prevenção. Mas assumiu o copo, e seu conteúdo, como o complemento necessário à autoexpressão. Beber era cool. Beber muito era uma ousadia. Cair de beber era ter uma história para contar.

O copo — de uísque, vodca ou cerveja — aumentava seu raio de ação, prolongava seus braços e suas ideias, no sentido figurado ou não, trazia gente para perto e facilitava o intercambio. Quem não tinha um copo cheio na mão podia ser tomado como devagar, careta ou pouco adulto. Beber e dirigir era a coisa mais normal do mundo.

Nunca vi acontecer, mas tenho certeza de que alguém que bebesse e depois voltasse para casa de táxi era considerado, no mínimo, muito estranho. Mas um dia a conta chegou. O corpo, a mente e a sociedade não demoraram a cobrar a fatura. Beber mais do que socialmente não tem a mesma conotação destemida e masculina. Dirigir e beber é, além de infração, socialmente recriminável.

Trabalhar demais já foi motivo de admiração. Hoje é sintoma de falta de disciplina e organização. Para entender como esse mecanismo funciona, ou seja, como a ciência e a consciência nos fazem mudar critérios de interação social e adquirir novos hábitos, convido o leitor a um exercício de imaginação.

Uma das coisas mais contemporâneas que fazemos hoje é cuidar da nossa saúde e da nossa aparência por meio de exercícios físicos. Correr, pedalar, nadar, erguer pesos, nas salas das academias ou nas ruas, são hábitos altamente valorizados, e os gestos sociais que cercam essas atividades também: a roupa, o tênis, a mochila, a viagem para correr maratona.

As pessoas compartilham suas performances nas redes sociais, se frustram quando se lesionam, toda uma indústria gigantesca se formou em volta dos apelos de saúde, estética e bem-estar, talvez resultantes da atividade física diária.

Mas, pensemos em uma hipótese aparentemente esdrúxula: imagine que, de uma hora para outra, por algum motivo, como guerra, peste, pragas, clima, o mundo vivesse uma crise sem precedentes de produção de carboidratos.

Grãos, farelos, tubérculos, toda essa produção caindo de forma vertiginosa, ameaçando a existência da vida animal. Como seria encarado, a partir desse momento, o ato de queimar calorias voluntária e desnecessariamente? Pensei nisso outro dia enquanto pedalava numa academia, me sentindo muito bem.

Nossos filhos já nasceram com um gesto que é o de segurar um aparelho que os conecta a muito do que existe de bom e de ruim no planeta. É moderno.

Faces cabeludas se escondem atrás da tela e parecem mergulhar num mundo superlegal, de interações tão rápidas quanto esquecíveis. Os cientistas apenas começam a nos avisar o nível de risco que essa população está correndo com relação a seu sossego mental e sua afetividade pela exposição a tantos estímulos durante tantas horas por dia.

Mas é o gesto de uma época. É “chave”, como se diz. E não interessa saber se outros hábitos em outras eras já foram “chave” um dia.

Vamos ter de entender por nós mesmos o papel da moderação.

 

*Crédito da imagem do topo: Jakob Owens/Unsplash

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