O beijo gay e os elefantes

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Opinião

O beijo gay e os elefantes

A mesma imprensa que dá voz a tudo sente-se compelida a combater o que ela própria reverberou


17 de setembro de 2019 - 11h36

(Crédito: Pine Watt/ Unsplash)

Se eu te disser agora para não pensar num elefante, qual será a primeira coisa que virá à sua cabeça? Pois é. O fato de você estar neste exato momento pensando num paquiderme e sua tromba é explicado pela ciência cognitiva. E está por trás da guerra de fatos e versões que vivemos hoje, com discursos manipulados que afetam a sua vida, a minha e a de todos.

O assunto ganhou especial atenção devido ao recente avanço de governos populistas pelo mundo. Um dos pesquisadores que melhor explica o conceito é o neurocientista e linguista americano George Lakoff, em seu livro Don’t Think of an Elephant! Uma das principais conclusões de Lakoff: negar uma mentira apresentando a verdade é insuficiente para mudar as crenças de uma pessoa.

O fenômeno é conhecido como “framing”, de “moldura”, em inglês. Lakoff explica que, de acordo com esse conceito da ciência cognitiva, todos possuímos valores pré-concebidos que estão emoldurados em nosso inconsciente.

Ele dá o exemplo da palavra “alívio”. Ela está dentro de um frame que traz associações imediatas em nossa mente: para ocorrer um alívio, é preciso existir uma aflição (algo ruim), alguém aflito (uma “vítima”) e um aliviador (aquele que remove a aflição, um “herói”). Todos os frames são ativados pela linguagem e determinam uma reação no nosso cérebro. Ocorre que essa reação sempre será única e pessoal, baseada nos nossos valores e ideias inconscientes, tornando os fatos secundários à moldura. Significa que, se os fatos não se encaixam numa moldura, a moldura resiste. E os fatos são descartados.

Traduzindo para o nosso exemplo: se alguém diz que irá te proporcionar um alívio qualquer e eu nego essa possibilidade por alguma razão (não importa qual), me torno automaticamente, na sua cabeça, um “vilão” — pois estou impedindo esse alguém, um “herói”, de promover um alívio a você.

Imagine um governo que diga, por exemplo, que irá promover um “alívio de impostos”. Essa frase irá ativar o frame mencionado acima, e, a partir daí, qualquer coisa que eu te diga “contra” esse alívio, mesmo que 100% baseada em fatos, não fará efeito algum. Pior: se eu simplesmente me posicionar contra o “alívio de impostos”, vou invocar esse frame na sua mente, automaticamente bloqueando seu entendimento sobre qualquer argumento que eu tenha sobre o assunto, mesmo que seja um argumento válido. “Mesmo quando você nega uma moldura, ativa essa moldura”, explica Lakoff. Passei a aplicar esse conceito em tudo o que vejo e cheguei a três conclusões polêmicas.

Primeira: o lado taquigráfico do jornalismo, um princípio básico da profissão que dá voz a pessoas importantes e transforma tudo o que essas pessoas dizem em notícia, merece uma revisão. Uma ampla discussão para ver se ainda faz sentido.

As pessoas importantes vêm usando esse poder de amplificação de forma indiscriminada, com cada vez menos limites. Muitas vezes, tirando a atenção do que realmente importa. São clássicas manobras diversionistas que seguem o roteiro “pouco importa se o que digo não tem nada de racional ou mesmo razoável; se despertar paixões e mobilizar pessoas, vou conquistar uma parte da opinião pública”. E vemos a imprensa, muitas vezes, publicar absurdos de forma automática, sem questionamentos.

Segunda: a mesma imprensa que dá voz a tudo o que as pessoas importantes falam sente-se compelida a combater o que ela própria reverberou quando a mensagem é absurda. E cria um efeito contraditório: “dou voz a algo absurdo porque é minha obrigação profissional, da mesma forma que ‘resistir’ ao que acabei de publicar também é”.

O exemplo mais gritante é a recente censura à HQ do beijo gay na Bienal do Rio. Do ponto de vista pessoal, aplaudi a capa da Folha de S. Paulo e dezenas de outras manifestações contrárias à censura. Mas, do ponto de vista técnico da comunicação, aprendi que só o fiz porque elas se encaixaram no meu frame sobre o tema. Em outras palavras, do ponto de vista técnico, a capa da Folha provavelmente pregou a convertidos. E provavelmente teve pouco efeito para “reemoldurar” o debate em termos diferentes daqueles ditados pelo prefeito do Rio de Janeiro (que, aliás, também pregou aos seus convertidos, pessoas que, diferentemente de mim, têm o beijo gay num frame associado a valores negativos).

Terceira conclusão: fazer o jornalismo com a técnica “de sempre” não tem mais surtido o efeito desejável que a prática deveria ter. Apontar absurdos, mentiras e contradições em discursos é insuficiente para combater manobras diversionistas. E isso vem dando um tilt na cabeça de muita gente.

Para serem eficazes, fatos precisam ser emoldurados da maneira certa. “Acreditar que apresentar fatos de maneira competente basta para que o cidadão ‘acorde’ é uma ilusão”, explica Lakoff.

O que fazer? Um bom começo é parar de correr atrás dos nossos próprios rabos de elefante.

*Crédito da foto no topo: Brotin Biswas/Pexels

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