Mulheres negras e mercado de trabalho: gaps e ações
Fundadoras da consultoria Indique uma Preta destacam que empresas precisam ir além da contratação e mudar cultura organizacional para, de fato, ter diversidade
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Bárbara Sacchitiello
8 de março de 2021 - 6h02
Debatida pelo mercado corporativo há alguns anos de forma mais profunda, a questão da equidade de gênero está longe de ser superada. Apesar de uma inegável evolução na abordagem do assunto, a maior parte dos mais altos cargos das grandes empresas ainda continua ocupada por homens. A equiparação salarial, da mesma forma, ainda não é realidade em muitas organizações.
Para alguns grupos, no entanto, a barreira de gênero é mais uma dentro de um conjunto mais amplo de entraves. No caso da maioria das mulheres pretas e pardas, que representam boa parte da população brasileira, os cargos e salários mais altos das empresas ainda estão distantes. Com o crescimento da discussão sobre a questão racial em todo o mundo, o mercado corporativo vem colocando o assunto em sua agenda de inclusão, começando a discutir – e a colocar em prática – alternativas para corrigir a falta de diversidade racial em suas equipes.
Auxiliar as profissionais negras a encontrarem oportunidades no mercado de trabalho e, também, ajudar as empresas a se conectarem com esses talentos foi o que motivou a criação da consultoria Indique uma Preta, em 2016. O grupo, formado por Amanda Abreu, Danielle Matos e Veronica Dudiman já foi responsável por auxiliar diversas empresas a atuarem na pauta da inclusão racial eestá, desde o ano passado, incubado na estrutura da Mutato.
Na opinião das fundadoras do projeto, abrir as portas para contratar mulheres negras é uma atitude importante, mas apenas o primeiro passo de uma série de ações que as empresas devem colocar em prática se quiserem atuar de forma profunda em prol da diversidade. Veja a entrevista:M&M: Nos últimos meses começamos a ver algumas iniciativas de empresas para diminuir o gap racial e baixa presença de pessoas negras em seu quadro, sobretudo nas posições de liderança. Em sua opinião o mercado já está dedicado a esse assunto a importância que o tema demanda ou ainda há atraso na abordagem?
Danielle Mattos: Não existe atraso na abordagem, necessariamente. O que falta é estratégia. Entendemos que os últimos anos foram pautados em intensa discussão acerca da questão e, mesmo que tardiamente, é natural que ocorra essa pressão que as agências e empresas estão sentindo agora para contratar pessoas negras. Mas a contratação por si só é, ainda, um aspecto tático dentro do amplo contexto estratégico de diversidade e inclusão que as empresas precisam mergulhar fundo e entender melhor. A diversidade não se resolve na contratação. Trazer pessoas negras para o quadro de funcionários da empresa é apenas o primeiro passo de uma profunda jornada de transformação que precisa atravessar toda a cultura organizacional das empresas.
M&M: Nos últimos anos o setor corporativo falou muito sobre o desequilíbrio de gênero e as dificuldades que as mulheres, de forma geral, enfrentam no mercado de trabalho. No caso das mulheres negras (e não-brancas), de que forma que essas dificuldades crescem tornando a construção de carreira ainda mais complicada?
Danielle Mattos No final do ano passado, em parceria com a BOX1824, lançamos a pesquisa “Potências (In)Visíveis: a realidade da mulher negra no mercado de trabalho”. O estudo, que ouviu mais de mil mulheres negras em todo o Brasil, apontou que 40% dessas mulheres enxergam a inserção no mercado de trabalho como difícil ou muito difícil. Além disso, 37% delas tiveram opinião/posicionamento/ideia silenciada enquanto a opinião de pessoas brancas era ouvida e valorizada e 58% delas já escutaram piadas relacionadas a cor, cabelo ou aparência. Logo, entendemos que essa falta de segurança psicológica na cultura organizacional, preparação de lideranças e manutenção da cultura organizacional corroboram para essas barreiras que afastam as mulheres negras do mercado.
M&M: De que maneira as empresas poderiam começar a atuar para ampliar a presença de mulheres negras e de outras etnias em seu quadro?
Amanda Abreu: Entender que a contratação é apenas o início da inserção dessas colaboradoras é algo que algumas empresas já começaram a definir como premissa, mas essa ação deve vir acompanhada de iniciativas paralelas, que vão desde do treinamento e conscientização das equipes de seleção até a ampliação dos repertórios que essas mulheres possuem, especializações que ultrapassam, muitas vezes, os requisitos limitados que são pautados nessa busca. Por isso, voltamos a reforçar o fato da contratação ser apenas o começo de uma atuação mais estratégica e verdadeiramente inclusiva. O objetivo dessas mulheres é se desenvolver nesses espaços e as empresas ainda não possuem estruturas necessárias para que essa evolução ocorra. Um reflexo disso também é diagnosticado em nossa pesquisa: 45% das mulheres negras afirmam que já se sentiram desqualificadas profissionalmente mesmo tendo toda formação necessária para ocupar tal espaço e, como resultado, 54% das mulheres da classe CDE afirmam o reconhecimento profissional como difícil ou muito difícil. É urgente e necessário ultrapassar a linha da intenção e contar com consultorias especializadas para ampliar as iniciativas voltadas para o progresso dessas profissionais, para que, cada vez mais, essas mulheres ocupem os cargos de tomadas de decisão nesses espaços e se tornem responsáveis pela formação de equipes futuras. Dessa forma, em um movimento natural, uma composição plural de ideias e narrativas começará a compor a linha de frente dos projetos e marcas dessas empresas.
M&M: Além da contratação, de que forma é possível trabalhar a cultura da empresa para o desenvolvimento de talentos de mulheres negras?
Veronica Dudiman: Enquanto consultoria, entendemos que cada empresa pode atuar na potência máxima de sua vocação. Isso quer dizer que todas as empresas podem trabalhar sua cultura pela perspectiva da diversidade, por menor que ela seja, ou por mais restrito que o seu negócio seja. Dessa forma, um dos primeiros passos a serem dados na direção desse trabalho é entender quais ferramentas já existem na empresa e estão disponíveis para serem exploradas nesse processo. Posteriormente, é preciso compreender o cenário de maturidade de toda a empresa, mensurar, sensibilizar e engajar lideranças.
M&M: Analisando especificamente o mercado publicitário, como vocês veem o avanço dessa pauta da diversidade e da inclusão racial das profissionais mulheres?
Amanda Abreu: O fato de estarmos falando sobre essa pauta em 2021 já se configura como uma mudança de cenário, uma vez que 10 anos atrás, quando a nossa geração estava se inserindo no mercado de trabalho tal discussão já era levantada pelo movimento negro, mas ignorada pelo mercado. Então, se fazer presente em um dos principais veículos da área para discutir e compartilhar o que as profissionais negras desse mercado vivenciam é de fato um reflexo do quanto as discussões sociais estão emergindo nesses espaços. As campanhas publicitárias foram o ponto inicial a refletir essas mudanças, primeiro através do gênero e logo em seguida com a presença de pessoas negras nos filmes, população essa que apesar de compor a maioria demográfica e ter potencial de consumo expressivo, ainda não é retratada equivalência como protagonista na indústria criativa. Após essa pauta transitar entre o que é produzido, ela se voltou a “quem produz”, ou seja, a um questionamento que ascendeu no mercado, principalmente a partir do incômodo de profissionais que eram invisíveis para essa “bolha publicitária”. Devido a essa exclusão, coletivos criativos independentes, como o MOOC, foram surgindo, apresentando perspectivas inovadoras e relevantes, o que resultou em projetos com grandes anunciantes.
Verônica Dudiman: A partir desse momento um “alerta” foi despertado e as algumas agências, principalmente aquelas de posicionamento “vanguardista”, começaram a ter um olhar de valorização sobre esses profissionais e a buscarem por eles. Essa mudança também foi impulsionada pelas redes sociais e as comunidades que nasciam ali. Não à toa, hoje vemos que esse movimento coletivo trouxe avanços igualmente coletivos, uma vez que, apesar da falta de proporcionalidade, a existência desses profissionais é mais expressiva hoje do que anos atrás. Mesmo assim, o problema não pode ser encarado como resolvido. Ainda existem diversas barreiras a serem superadas – como a do desenvolvimento e a consolidação dessa presença em um espaço de liderança.
M&M: Quais são os maiores desafios para que a sociedade e o mundo corporativo consigam ampliar as oportunidades para mulheres negras no mercado de trabalho?
Danielle Mattos: Quando se fala em representatividade de pessoas negras, parece existir uma energia pairando sobre o mercado que ainda não foi direcionada a um foco de real impacto. A Indique um Preta acredita que só vamos conseguir ampliar as oportunidades para as mulheres negras quando esse foco estiver voltado à todo o potencial que as narrativas e repertórios dessas mulheres possuem. O mercado precisa parar de olhar essas mulheres como “o outro” e começar a trabalhar os seus próprios vieses de branquitude. É muito comum as empresas nos procurarem e dizerem “não conseguimos encontrar pessoas negras suficientemente qualificadas para essas vagas”. Essa é apenas mais uma das falácias que o racismo nos conta. Essas mulheres existem. Precisamos furar essa bolha “sudestina”, racista e elitista que vivemos. Ela pouco se conecta com essas mulheres e nos impede de ter a real visibilidade do potencial de tantas mulheres negras Brasil afora. O desafio consiste mais em trabalhar e renovar essas estruturas do que encontrar as candidatas em si. É por isso que uma das soluções que desenvolvemos junto aos nossos clientes consiste em criar laços genuínos entre essas instituições e as mulheres da nossa comunidade. Esse tipo de entrega acaba sendo uma ponte para promover conexão, mentoria, empregabilidade, sensibilização, empatia e desenvolvimento para ambas as partes.
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