Assinar

Sem referência, sem reverência

Buscar
Publicidade
Marketing

Sem referência, sem reverência

Coffee break: Quando as pessoas, diante de um grande talento que foi capaz de gerar fama e riqueza, se encantam mais com a fama e com a riqueza do que com o talento em si, é porque há algo errado no seu sistema de valores


3 de março de 2016 - 8h12

(*) Por Marcos Caetano

Há tempos eu vinha planejando escrever sobre a minha preocupação com a exagerada falta de referência — e de reverência — da geração dos millennials, da qual até sou fã. No entanto, talvez por conta de algum processo psicológico causado por meu otimismo crônico, doença herdada de meus pais, eu sempre esperava por algum sinal de melhora dos sintomas. A molecada vai acabar se dando conta dessa falha, pensava. Infelizmente, não apenas os sinais de melhora jamais chegaram como o episódio do Paul McCartney barrado numa festa pós-Grammy organizada por um grupo de rappers acabou sendo a gota d’água para que o texto finalmente nascesse. E aqui está ele.

Não. Eu jamais seria tolo a ponto de defender que jovens, desta ou de qualquer geração, têm o dever de ser extremamente respeitosos em relação aos que vieram antes deles. Ao menos não como algo obrigatório. Sir Paul McCartney, no final dos anos 1950 e início dos anos 1960 — quando era barrado em eventos não por ignorância dos anfitriões diante de sua genialidade, mas apenas porque era um completo e indiscutível pé-rapado —, precisou quebrar muitos tabus e reinventar muita coisa para encontrar seu lugar ao sol com os Beatles. Entre outras coisas, precisou ouvir de um executivo de gravadora que ele e seus três amigos jamais fariam sucesso, pois “bandas com guitarras estão absolutamente fora de moda”. Não se faz o mundo avançar se apenas copiamos o que os gigantes das gerações anteriores fizeram, mas entendo que tentar inovar sem entender o que nos antecedeu seria como se cada geração representasse uma volta à Pré-História. É impossível, por exemplo, ouvir Eleanor Rigby, belíssima composição de Paul, sem perceber a ressonância dos acordes de Bach. Da mesma forma, John Lennon, genial parceiro de Paul, declarou dezenas de vezes que tudo o que fez como músico foi inspirado por Elvis. Eis o meu ponto: embora o som dos Beatles fosse essencialmente diferente de Bach e Elvis, os garotos de Liverpool sabiam quem eram esses antecessores célebres — e jamais os barrariam numa festa.

É claro que a culpa não é toda dos millennials. Essa confusão de irreverência com desrespeito e de desapego de referências com pura ignorância não nasceu exatamente hoje, embora me pareça ser uma daquelas coisas que os pessimistas classificam como males do século. Recordo de uma transmissão dos desfiles de Carnaval, no início dos anos 2000, em que um repórter da Rede Globo entrevistava uma ex-BBB que havia desfilado na Portela. Atrás da entrevistada, um ajudante da equipe de TV se preocupava em retirar do enquadramento as pessoas que passavam olhando para a câmera, como se elas estivessem “sujando” a transmissão. Isso já era feio. Mas achei particularmente bizarro quando o ajudante começou a empurrar um grupo de idosos vestidos de azul e branco que passava lentamente ao fundo da ex-BBB. Era simplesmente a Velha Guarda da Portela. Eu até aceito que os velhos sambistas não sejam capazes de chamar tanta atenção do grande público quanto um integrante de reality show que está estouradíssimo na mídia. Mas ali, na Passarela do Samba, durante o desfile da escola cuja mística eles ajudaram a criar, aquelas senhoras e senhores jamais poderiam ser desprezados. Porque isso é exatamente cruzar a linha entre a irreverência e o desrespeito.

Talvez por conta desses tempos de absoluta falta de referências e referências, a emenda do caso Paul McCartney tenha saído pior do que o soneto. Isso porque um dos rappers anfitriões da festa na qual o beatle foi barrado tentou justificar o episódio com base em uma diferença de gerações. Como Paul é de uma geração anterior, disse ele, o pessoal “não devia conhecê-lo muito bem”. Não acho que o jovem músico tenha usado essa explicação para tripudiar o setentão. Isso talvez fosse até mais aceitável do que a razão real: ele, de fato, acredita que os Beatles pertencem a outra geração, o que é muito triste. Um músico premiado com o Grammy restringir os Beatles a uma geração é mais ou menos como um artista plástico se referir a Van Gogh como um obscuro pintor do final do século 19.

O curioso é que, mesmo entre os millennials que dizem reverenciar profissionais de gerações anteriores, é possível identificar posturas controversas. Um dos grandes problemas que percebo em alguns dos jovens que me procuram para conversas de coaching não aparece logo de cara — mas não é preciso mais do que uma pergunta para que ele logo venha à tona. O problema tem a ver com as razões para a veneração. Um jovem me diz: “Eu acho o Fulano de Tal o máximo”, sendo que o Fulano de Tal pode ser um grande publicitário, um músico talentoso, um empresário de sucesso, um ator consagrado ou algo parecido. Então eu faço a pergunta crucial: “Por que você acha que ele é o máximo”? As respostas costumam me decepcionar. Ele é o máximo não porque é um gigante de sua arte, um sujeito que revolucionou sua profissão ou uma pessoa que promoveu grandes transformações no mundo. Na maioria das vezes, o publicitário é o máximo porque vendeu sua agência por não sei quantos milhões e tem uma casa de cinema em alguma praia badalada; o atleta é o máximo porque é famoso e viaja pelo mundo; o ator é o máximo porque é casado com a Fulana e frequenta as altas rodas; o músico é o máximo porque tem seu próprio jatinho; e por aí vai.

Quando as pessoas, diante de um grande talento que foi capaz de gerar fama e riqueza, se encantam mais com a fama e com a riqueza do que com o talento em si, é porque há algo errado no seu sistema de valores. Existe a boa e a má ambição. A boa ambição é a ambição de realizar e de ser. A má ambição é a ambição de ter e de parecer. Poucas pessoas me parecem tão fascinantes quanto um jovem ambicioso. Mas só se sua ambição tiver o propósito certo.

Marcos Caetano é sócio-global da Brunswick Group LLC
wraps

Publicidade

Compartilhe

Veja também

  • Cimed amplia collab com Fini e lança gel dental e enxaguante bucal

    Cimed amplia collab com Fini e lança gel dental e enxaguante bucal

    Já foram vendidas 7 milhões de unidades dos produtos para o varejo farmacêutico e projeção é chegar a 100 milhões em 2025, com faturamento de R$ 1 bilhão

  • Avon amplia pontos de venda e reforça atuação omnichannel

    Avon amplia pontos de venda e reforça atuação omnichannel

    Marca abre sua loja própria no Mercado Livre, chega à rede Bel Cosméticos e expande parceria com a Soneda