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Opinião

A rede social do bem

Os seres humanos são cheios de dúvidas e certezas, sendo assim, os usos de suas invenções acabam refletindo suas contradições e, não raro, são capazes tanto gerar o bem maior quanto instilar a divisão


7 de maio de 2019 - 15h31

 

(Crédito: iStock)

Há uma história muito difundida sobre o suicídio de Alberto Santos-Dumont, que teria desistido de viver ao perceber que o avião, sua maior invenção, estava sendo usado como máquina de guerra, em vez do seu objetivo original, muito mais elevado, de aproximar pessoas. Embora não haja provas de que tenha sido exatamente assim — os dramas do grande brasileiro eram mais profundos do que isso —, a história nos toca o coração, pois é doloroso percebermos que algo que foi criado com o propósito de fazer o mundo progredir seja capaz de ajudar a destruí-lo. Santos-Dumont era um homem de profunda inteligência e cidadão do mundo, de forma que acho improvável que ele não tenha percebido que quase todas as grandes invenções passaram por um processo semelhante.

Os livros já foram (e ainda são) bastante usados para divulgar conceitos atrasados e incentivar o fanatismo; o rádio foi usado para veicular propaganda fascista e ideias retrógradas; a TV muitas vezes ajudou a cristalizar ideias preconceituosas e a eleger pessoas desqualificadas; e assim por diante. Isso acontece porque a espécie humana é um grande caldeirão no qual constantemente se misturam os piores e os melhores sentimentos. Os seres humanos são cheios de dúvidas e certezas, preconceitos e compreensão, decisões completamente erradas e maravilhosamente certas — e, sendo assim, os usos de suas invenções acabam refletindo suas contradições e, não raro, são capazes tanto de gerar o bem maior quanto instilar a divisão. Não poderia ser diferente, claro, com as redes sociais.

Quando eu era bem menino, ali entre os sete e os dez anos, minha mãe pediu que eu frequentasse a casa de uma vizinha alemã, bem velhinha, para receber aulas de moral cristã. Ela se chamava Dona Kilda Müller e desconfio que tenha vindo para o Rio de Janeiro fugindo do horror da Segunda Guerra Mundial. Ao chegar à nova morada, ela foi exposta ao grande sincretismo religioso brasileiro e se tornou uma combinação perfeita e improvável de católica apostólica com espírita kardecista. Essa senhora foi uma das pessoas que transformaram minha vida para sempre. Aprendi muitas lições, valores inestimáveis, enxerguei os erros que já havia cometido e, em especial, os que corria o risco de cometer. Ao final de cada aulinha, Dona Kilda segurava as minhas mãos e dizia: “Que estas mãozinhas só sirvam para o bem”. Desde então, não há noite em que eu não me pergunte sobre o uso que venho dando às minhas mãos, já não mais pequeninas. Felizmente, na maioria das vezes sinto que a boa velhinha, de algum lugar, estará orgulhosa de mim. No entanto, já houve ocasiões em que eu senti que a decepcionei, o que moralmente me obrigou a buscar corrigir as falhas que cometi. O fato é que, desde aqueles tempos, não perdi a mania de querer que tudo e todos sejam capazes de usar sua plena capacidade para o bem.

Foi pensando nisso que me ocorreu a ideia de um projeto social um tanto ousado, que gostaria de compartilhar com vocês. Ele tem como plataforma aquela que talvez seja a mídia social que mais difundiu o ódio nos últimos tempos. Uma mídia extraordinária em sua concepção, mas que, ao cair em poder de mãos preconceituosas, foi capaz de dividir famílias, afastar amigos e promover o ódio entre pessoas que divergem politicamente. Já escrevi aqui sobre esse aplicativo. Ele se chama WhatsApp. Pois a minha ideia tem justamente a ambição de resgatar o malfadado Whats e tornar seu legado relevante para o mundo, de uma forma positiva. Vamos a ela.

Vocês se lembram do filme As Confissões de Schmidt? Nele, o personagem-título, vivido por Jack Nicholson, encontrava-se desgostoso da vida, que já vinha sem sentido e se tornou ainda mais sem sentido depois da morte de sua mulher. Sem uma ideia melhor sobre o que fazer daquele momento em diante, Schmidt sai rodando de sua casa em Omaha, Nebraska, em um gigantesco RV (que, no Brasil, chamamos de motorhome), para fazer uma roadtrip pela América profunda. Antes de sair de casa, por alguma razão, ele decide apoiar um desses projetos sociais que fazem muita publicidade na TV, e cujo objetivo é captar contribuições mensais de pessoas abastadas que se sentem culpados e acreditam que salvarão o mundo — e, por consequência, suas almas — apenas informando os dados do cartão de crédito para uma entidade beneficente cobrar mensalidades. Schmidt, de forma um tanto aleatória, escolhe contribuir com um projeto de meninos carentes da África.

Pouco tempo depois, chega a mala direta agradecendo a contribuição e informando, protocolarmente, que o menino que ele está ajudando se chama N’dugu (aquela conhecida técnica das ongs de tentar aumentar a fidelização dos contribuintes dando uma fisionomia para quem recebe a ajuda). Desesperado por não ter com quem conversar, uma vez que seus poucos amigos já tinham morrido, Schmidt decide escrever para N’dugu a esmo, sem qualquer expectativa de retorno. Suas cartas, que vão sendo enviadas em cada parada da viagem, trazem desabafos, comentários ácidos, críticas à sociedade, assuntos totalmente distantes da realidade do garoto. O homem cínico e alquebrado fala apenas de si mesmo para aquele pequeno fantasma, que certamente jamais o contestaria. No entanto, no final do filme, exatamente na última cena, Schmidt recebe uma carta, escrita por uma freira ligada ao projeto. É uma das melhores cenas da carreira do velho Jack — e ele não fala uma palavra, apenas chora. Procurem ver o filme, ou ao menos essa cena no YouTube. Vale muito a pena.

Uma vez entendido o contexto do filme, é fácil explicar meu projeto: eu queria ter um N’dugu no WhatsApp. E queria que todas as pessoas de bem tivessem um também. Não para tretar sobre política, enviar memes ou figurinhas, mas para conversar de verdade, aconselhar, orientar, ouvir, apoiar. Acho que esse poderia ser um grande projeto — e relativamente fácil de colocar de pé. Bastaria construir um site onde quem quisesse participar se inscreveria com o WhatsApp e, a partir dele, entidades na África, Ásia e América do Sul indicariam meninos e meninas (de acordo com os idiomas falados pelos que querem ajudar) para receberem acompanhamento. Uma pessoa, uma criança. Não mais. Com o celular se tornando um bem de uso quase generalizado, mesmo entre jovens pobres, mas com acesso à internet, é viável um projeto assim. Não ajudaria pessoas em extrema pobreza, que não têm celular, mas seria uma esperança para jovens pobres, muitos dos quais vivendo em lugares devastados por guerras ou divisões religiosas.

Uma pessoa esclarecida pode fazer um mundo de diferença na vida de uma criança humilde. Se mesmo escrevendo besteiras o Schmidt fez diferença, imagine se falarmos coisas boas. A única complexidade do projeto seria evitar que ele fosse usado para o mal, como o avião do Santos-Dumont. Mas o registro das conversas, além de monitoramento por meio das entidades que acompanham os meninos e do próprio WhatsApp, poderiam resolver essa preocupação, infelizmente sempre presente. Outra coisa que me ocorreu é uma espécie de Shark Tank para projetos sem fins lucrativos. Ideias de ongs e projetos sociais que seriam avaliados e, eventualmente, apoiadas por pessoas ligadas a grandes fundações ou da área de responsabilidade social de grandes corporações. Se eu sentasse com um big boss de um canal de TV, acho que venderia essa ideia. E, se eu fosse ao tal programa, tenho certeza de que aprovaria um apoio para o projeto “Dear N’dugu”.

Aceito ajuda e ideias de todos os que estão me lendo aqui. Vamos unir as nossas mãos. Para que elas, como diria a Dona Kilda, só sirvam para o bem.

*Crédito da foto no topo: Pete Linforth/Pixabay 

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