Alianças afetivas
Jogadores penta e tetracampeões mundiais não foram ao velório de Pelé, mas cerca de 230 mil pessoas, em sua maioria fãs comuns que admiraram o ídolo, compareceram para dar seu adeus
Jogadores penta e tetracampeões mundiais não foram ao velório de Pelé, mas cerca de 230 mil pessoas, em sua maioria fãs comuns que admiraram o ídolo, compareceram para dar seu adeus
Nasci em 23 de junho de 1970, dois dias após o Brasil conquistar o tricampeonato na Copa do Mundo. Nesse dia, uma terça-feira, a seleção desembarcou do México e desfilou em carro aberto do Corpo de Bombeiros pelas ruas de São Paulo e todos queriam prestigiar aquele time de craques que tinha como estrela máxima o rei Pelé. O trânsito na cidade ficou caótico a ponto de eu quase nascer no carro, nas imediações da Avenida Paulista, perto da maternidade onde minha mãe veio a dar à luz menos de 15 minutos depois de sua entrada.
Escrevo este texto também numa terça-feira, no dia em que o corpo de Pelé desfilou pelas ruas de Santos em um momento de imensa comoção popular. Jogadores penta e tetracampeões mundiais com a seleção brasileira não foram ao velório de Pelé, na Vila Belmiro (com a exceção de Mauro Silva), mas cerca de 230 mil pessoas, em sua maioria fãs comuns que admiraram o ídolo dentro e fora de campo, compareceram ao velório para dar seu último adeus ao maior jogador de futebol de todos os tempos. Para efeitos de comparação, a população de Santos é de 433 mil pessoas. Dá facilmente para afirmar que boa parte da cidade passou pelo campo da Vila Belmiro para se despedir do seu mais ilustre representante.
Eu estava em trânsito, na estrada, quando soube da morte de Pelé, na quinta anterior, e meu marido, que é inglês e estava ouvindo a BBC 5 Live, nos trouxe a triste notícia. Por mais de quatro horas, durante a viagem de carro de São Paulo a Florianópolis, ficamos ouvindo a cobertura ao vivo da BBC sobre a morte do atleta do século, repercutindo aquela perda por meio de entrevistas com personalidades inglesas ligadas ao esporte, comentaristas, ex-jogadores e jornalistas, de diferentes gerações. Especiais sobre a trajetória de Pelé ocuparam grande espaço na imprensa mundial nos dias seguintes à sua morte. Nenhum outro atleta jamais alcançou essa posição globalmente.
O fato de Pelé ser brasileiro e negro diz muito sobre as dimensões simbólicas do que representa. Ele foi cobrado ao longo de sua carreira e vida após o futebol para se engajar mais na luta contra o racismo. E nesse ponto é importante fazer duas ponderações. A primeira é que sua genialidade como jogador e sua presença nos campos de futebol, nas telas de televisão e jornais por todo o mundo foram essenciais para a construção de uma representatividade negra no Brasil.
Em entrevista à ESPN, Tibe Bi Gole Blaise, cônsul da Costa do Marfim, destacou a luta de Pelé no combate ao racismo e resumiu o que ele representa: “O racismo é menor porque Pelé existiu. Se não tivesse existido Pelé, nenhum negro estaria jogando”.
O segundo ponto nessa questão diz respeito a uma narrativa de apagamento das questões raciais vigente em boa parte do século passado, portanto, no auge da carreira de Pelé, quando o mito da democracia racial era a tônica corrente. Questões raciais, ainda que com mais de 500 anos de atraso, se tornaram pautas da sociedade, alcançando territórios para além da militância do movimento negro, apenas no século XXI. Portanto, não faz sentido essa narrativa em torno de Pelé. Ele deu representatividade mundial ao brasileiro preto.
Em artigo publicado no jornal The New York Times e na Folha de S.Paulo, o ensaísta José Miguel Wisnik deu a exata dimensão do que foi (e ainda é) Pelé: “Além de reconhecido e reverenciado nos meios tradicionais do futebol europeu, esse suave homem negro, representante de um país periférico e atuando numa linguagem não verbal de máxima irradiação, foi percebido, celebrado e amado nos mais diversos rincões do mundo como a afirmação eloquente por si só de uma grandeza maior do que qualquer supremacia política e econômica”.
Uma das minhas leituras das férias de final de ano foi o delicioso Futuro Ancestral (Companhia das Letras, 2022), de Ailton Krenak. Fiquei especialmente tocada com um conceito que ele traz no livro, o de Alianças Afetivas como contraposição a Alianças Políticas — “Esse movimento não reclama por igualdade, ao contrário, reconhece uma intrínseca alteridade em cada pessoa, em cada ser, introduz uma desigualdade radical diante da qual a gente se obriga a uma pausa antes de entrar: tem que tirar as sandálias, não se pode calçado”. Do ponto de vista de Krenak, ou segundo sua cosmovisão, esse conceito tem um peso ainda maior, como representantes de um povo milenar.
A morte de Pelé e sua repercussão entrecruzadas com as ideias de Krenak fizeram com que este início de 2023, pelo menos para mim, ganhasse ainda mais um contorno diferente. Literalmente, nosso passaporte no mundo se foi. E caberá a nós construirmos coletivamente algo no seu lugar, baseado em nossas diferenças, pois são elas que nos tornam tão singulares.
Um 2023 mais generoso para todos nós!
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