Cada um no seu casulo
Tenho a firme impressão de que qualquer crítica a um dos lados do debate público automaticamente coloca o autor das críticas em uma inexorável condição de fascista, comunista ou de ambos
Tenho a firme impressão de que qualquer crítica a um dos lados do debate público automaticamente coloca o autor das críticas em uma inexorável condição de fascista, comunista ou de ambos
Uma das coisas que mais têm espantado as pessoas que se dedicam a refletir sobre as grandes questões da humanidade é a incrível contradição de vivermos tempos em que a quantidade de informação e pontos de vista são abundantes como em nenhum outro momento na história, ao mesmo tempo que, por outro lado, as pessoas jamais estiveram tão fechadas a opiniões diferentes das suas. Muita gente boa já escreveu sobre isso e, entre elas, destaco Yuval Noah Harari, que publicou o ensaio “Why technology favours tyranny” na revista The Atlantic de outubro de 2018, cuja capa trazia a sugestiva pergunta: “Is democracy dying?” Eu mesmo já abordei essa questão — com menos talento, evidentemente — em textos publicados neste espaço. Alguns deles tinham um aspecto mais didático, outros eram mais “revoltadinhos” e outros ainda procuravam apelar para o humor como cura para os males desses tempos hiperconectados e ultraisolados. Sigo com a impressão de que as coisas vão piorar antes de começarem a melhorar, e isso pode levar uma ou duas décadas, mas nem por isso deixarei de trazer minhas impressões sobre o que me parece ser o grande desafio do nosso tempo: a urgente necessidade de reconciliação entre extremistas de diferentes causas.
Nas últimas semanas, decidi deixar alguns grupos de WhatsApp. Alguns é uma palavra generosa que emprego para disfarçar o fato de que deixei mais da metade dos grupos dos quais participava. Não quero que pensem que sou antissocial e quem me conhece sabe que não é o caso, mas realmente sentia que minha sanidade estava em risco, diante de tanto ódio e de tanta má vontade das pessoas em aceitar ideias minimamente diferentes das suas. Meu incômodo com os grupos que deixei, bem como com a seção de comentários dos leitores nos sites que acompanho — hábito mórbido e depressivo,eu bem sei, do qual também estou tentando me desvencilhar —, é a absoluta dificuldade de conversar sobre política ou qualquer outro tema de uma forma minimamente independente e racional. Digo política e qualquer outro tema porque o fato é que, hoje em dia, qualquer assunto vira debate ideológico em cinco minutos de conversa. Tenho a firme impressão de que qualquer crítica a um dos lados do debate público, seja de esquerda, de direta, de centro, na Terra ou em Marte, automaticamente coloca o autor das críticas em uma inexorável condição de fascista (se critica a esquerda) ou de comunista (se critica a direita) ou de ambos (se defende uma posição intermediária). Os que defendem posições intermediárias, aliás, são os que mais sofrem, pois apanham dos radicais dos dois lados, que hoje são claramente a maioria.
Jamais achei inteligente escolher apenas um lado. Como alguém que acredita na social democracia, ou seja, que acha que progresso social e capitalismo podem e devem andar de mãos dadas, não considero tudo que a esquerda faz uma desgraça, ao mesmo tempo que adoto igual atitude em relação aos conceitos da direita. Já vi bons governos de direita, de esquerda e de centro, mas preciso dizer que jamais ouvi falar de um bom governo de extrema direita ou de extrema esquerda. Exageros e fanatismos devotados a um dos lados do debate sempre acabam mal — e quem perde sempre é a democracia, esse sistema complexo e extenuante, cheio de defeitos e utopias inalcançáveis, mas que, como disse Churchill, ainda não foi superado por qualquer outro. “A democracia é a pior forma de governo, exceto todas as demais”, disse o velho estadista, com a sabedoria e a acidez de sempre.
Realmente queria poder ter o direito, bastante óbvio, diga-se de passagem, de gostar de uma ação do governo e desgostar de outra; de achar um ministro brilhante e outro tacanho; e de bater palmas para iniciativas de um governante ou de outro, ao mesmo tempo que desaprovo outras iniciativas de outro ou de um. Infelizmente, boa parte das pessoas estão fechadas em seus casulos. Se sou de direita, sigo apenas mídias sociais de gente de direita, leio apenas artigos de pessoas de direita e “debato” apenas com quem sei que vou concordar. Se sou de esquerda, a mesma coisa. Com isso, vamos nos condenando a viver em um mundo que não nos estimula a pensar diferente ou a buscar novas ideias e caminhos, o que é profundamente triste e medieval. Nos dias atuais, se eu for um terraplanista, posso viver sem ter que ler nada sobre os que acham que a terra é esférica. Basta optar por ler apenas sites terraplanistas e me relacionar somente com pessoas que compartilham da mesma crença. Recomendo fortemente às leitoras e aos leitores interessados em entender esse processo mental que assistam ao documentário da Netflix chamado “Behind the Curve” (“A Terra é Plana”, em português). Ele mostra como algo que poderia ser uma piada voltou a ganhar força e não para de ganhar adeptos, tudo por conta de um blogueiro chamado Matt Boylan, mais conhecido como Math Powerland. Ele defende que a Terra é achatada, similar ao símbolo da Organização das Nações Unidas, e o oceano é contido no planeta por uma gigantesca parede de gelo, a Antártida. Acima de tudo, haveria um domo dentro do qual o sol e a lua se movimentariam em círculos. Estudos mostram que, se continuar conquistando adeptos na velocidade atual, essa teoria será defendida por mais da metade da humanidade em algumas décadas. Isso não vai acontecer, mas é alarmante a capacidade das pessoas se manterem fechadas para verdades diferentes das suas.
Nelson Rodrigues escreveu uma vez que nada é mais terrivelmente excruciante do que defender o óbvio. Ele sofreu demais por criticar a União Soviética e ser liberal nos costumes, em tempos de culto ao comunismo por parte da esquerda e de ódio à revolução sexual por parte da direita conservadora. Apanhou que nem boi ladrão, como dizia a minha avó, dos dois lados. Foi tratado ao mesmo tempo como devasso e reaça, com a mesma carga de ódio vindo dos dois lados. Como não tenho a estatura intelectual nem a força de caráter do grande cronista e dramaturgo, preferi deixar os grupos de WhatsApp em que me sentia “caçado a pauladas como uma ratazana prenha” — para usar as palavras do mestre. Por outro lado, me conheço o suficiente para saber que qualquer dia retornarei a esses debates.
Por quê? Porque eu não perco essa mania insana de ter fé no ser humano.
*Crédito da foto no topo:Reprodução
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