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Cannes deveria ter uma premiação exclusiva para cases de causa

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Opinião

Cannes deveria ter uma premiação exclusiva para cases de causa

Muitas agências lançam-se numa corrida por temáticas sensíveis, o “pitch por empatia”, mas o impacto de muitas ações efetivamente é raro e efêmero


12 de maio de 2025 - 14h00

Fui jurado no Festival de Criatividade de Cannes em 2024, na categoria PR. A experiência, como se imagina, foi intensa, sofisticada e — por que não? — um tanto pedagógica. Em meio à maratona de julgamentos, um detalhe logo saltou aos olhos: a quantidade de cases centrados em causas sociais ultrapassava, com folga, os trabalhos de natureza comercial. E não me refiro à categoria Glass Lions, criada justamente para premiar iniciativas de impacto social. Falo das categorias regulares, nas quais campanhas que tratam de doenças raras, minorias esquecidas, mazelas ancestrais e dilemas contemporâneos competem — e vencem — ao lado de lançamentos de produtos ou reposicionamentos de marca.

Em determinado momento, a própria presidente do júri fez um alerta sutil: já havia cases de causa em excesso. O aviso não era uma crítica — era uma constatação quase geométrica. E ali se revelou um fenômeno curioso: quando o case é comercial, os jurados se debruçam sobre ele com frieza técnica. Analisam o problema, a estratégia, a execução, os resultados. Quando é de causa, porém, o júri se comove. Os critérios afrouxam. O olhar, antes técnico, torna-se visceral, quase litúrgico. Como julgar com severidade peças que se comprometem a salvar uma vida, as geleiras ou o planeta, proteger as crianças do perigo das telas patrocinadas com nossos anúncios, garantir a integridade dos clitóris das meninas quenianas ou denunciar uma injustiça histórica? Seria quase uma deselegância.

E é justamente aí que reside o problema. Sabendo que a emoção opera como atalho, muitas agências — algumas brasileiras, com especial entusiasmo — lançam-se numa corrida por temáticas sensíveis. É o “pitch por empatia”: a criatividade como veículo de redenção moral. A causa, muitas vezes, é real. Mas o impacto? Raro. Efêmero. Às vezes inexistente. São campanhas que existem mais para vencer do que para transformar. Que performam virtude em Cannes, mas não resistem ao tempo, nem à segunda página do Google.

A ironia é que Cannes já criou uma categoria específica para isso. O Glass Lions é o espaço ideal para premiar causas com responsabilidade, rigor e contexto. Mas as regras do festival permitem — e até estimulam — que esses cases sejam inscritos em múltiplas categorias. O resultado é um desequilíbrio sistêmico: campanhas de causa disputam e vencem em categorias em que os critérios deveriam ser outros. Compete-se com armas distintas. E a coragem criativa, que exige risco, estratégia e precisão, cede espaço à indignação roteirizada.

Talvez fosse o caso de uma separação institucional. Uma premiação paralela, com júris distintos, critérios próprios e a mesma aura de prestígio. Não para diminuir a importância das causas, mas para protegê-las — e proteger a criatividade comercial, que hoje parece constrangida, relegada ao papel de coadjuvante diante de narrativas mais inflamáveis. Afinal, é melhor ser visto como branco salvador do que acelerador do capitalismo.

Claro, resta uma dúvida incômoda: se causas e comerciais não dividissem o mesmo palco, será que sobraria tanta generosidade nos briefings? Será que o entusiasmo pelas pautas sociais sobreviveria à ausência do glamour oficial do prêmio mais desejado pelos publicitários e marqueteiros?

Se a causa só existe enquanto há júri assistindo, talvez não seja uma causa. Talvez seja só mais uma campanha — vestida de bondade, maquiada de urgência, pronta para subir ao palco para ostentar um Leão de Ouro sob os aplausos dos próprios pares e bem distante dos ativismos.

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