Assinar

“I’m sorry, Dave”

Buscar
Publicidade
Opinião

“I’m sorry, Dave”

A voz impassível do computador HAL 9000 mudou o jeito que interagimos com a tecnologia, por Jason Bermingham


20 de novembro de 2018 - 11h51

Crédito: reprodução

Faleceu na semana passada, aos 90 anos, o ator canadense Douglas Rain. Fora um tributo na revista Veja, a morte de Rain ganhou pouco destaque na mídia brasileira — talvez porque coincidiu com a morte do Stan Lee. Mas a notícia me surpreendeu e comoveu. Trabalho como profissional de voz e, junto com a minha esposa, a locutora e pesquisadora Simone Kliass, dou uma palestra sobre as vozes dos assistentes virtuais. Já apresentamos esse conteúdo em eventos de inovação como o Pixel Pocket em São Paulo, o HackTown em Minas Gerais e o FIC em Porto Alegre — e a nossa discussão sobre a Siri, Alexa e outras tecnologias “falantes” tem como ponto de partida a voz do Douglas Rain no papel do computador HAL 9000 no filme 2001 — Uma Odisseia no Espaço.

Esse clássico do diretor Stanley Kubrick está comemorando seu 50º aniversário, mas hoje os temas centrais do filme — e principalmente o debate sobre os perigos de brincar de Deus com a inteligência artificial — continuam mais pertinentes do que nunca. Com a direção do Kubrick, o Douglas Rain fez uma performance tão realista que o computador da nave Discovery One, às vezes, parece mais humana do que os próprios tripulantes. O visual icônico do HAL 9000 — um vidro redondo que tem um olhar vermelho e onipotente — foi criado passando uma luz por uma lente grande angular. Mas esse “olho” só ganha vida quando a voz do Douglas Rain entra em cena. Devido ao trabalho do ator, acreditamos que aquele olhar maléfico pertence a algo capaz de pensar — e até de matar.

Em uma das cenas mais famosas do filme, o astronauta David Bowman está no lado de fora da nave, pedindo para o HAL abrir a porta. A reposta que recebe: “Sinto muito, Dave. Receio que eu não posso fazer isso.” De repente o jogo mudou. A máquina resolveu se vingar de seu criador. Durante a cena, o timbre de voz do HAL se mantém sereno e amigável, o que torna a situação ainda mais aterrorizante. Por mais humano que o HAL soe, ele não sente emoção. Não adianta implorar com a inteligência artificial. Suas decisões são baseadas em lógica. Dave percebe, tarde demais, que a mesma tecnologia que facilita a sua vida também pode acabar com ela.

Alguns acreditam que quase todos os assistentes virtuais têm vozes femininas hoje em dia porque o HAL 9000 tinha uma voz masculina. Curiosamente, nos esboços originais do filme 2001, o computador da nave chamava Athena e falava com a voz de uma mulher. Mas o Kubrick mudou de ideia, pediu para um diretor assistente ler as falas do HAL durante as filmagens e acabou contratando Rain na pós-produção para passar dois dias num estúdio de gravação fora de Londres. Na nossa palestra, eu e a Simone chegamos à conclusão de que a tendência do uso de vozes femininas para os assistentes virtuais é complexa e tem a ver com questões sociais. Mas o HAL 9000 continua importante na história porque ele estava à frente do seu tempo. Quando o 2001 chegou nos cinemas em 1968, a ideia de um computador inteligente que falava naturalmente como um ser humano era ficção científica. Mas hoje todos nós carregamos um pequeno painel de vidro inteligente que possui inteligência artificial e que pode interagir conosco por meio de comandos de voz.

Douglas Rain desfrutou de uma carreira longa e bem-sucedida na televisão, nos cinemas e nos palcos — mas nenhum outro papel dele foi tão marcante quanto o do HAL 9000. O ator falava pouco sobre o seu trabalho com Kubrick. Provavelmente, sentia que aquele computador falante ofuscava outros grandes personagens que faziam parte do seu repertório. Várias vezes durante as minhas pesquisas pensei em viajar até o Canadá para conhecer o Douglas Rain pessoalmente. Me entristece saber que, a partir de agora, a voz dele viverá apenas no nosso imaginário. Rain era a pessoa certa, no lugar certo, na hora certa — e o que ele fez em frente de um microfone mudaria para sempre o jeito que interagimos com a tecnologia. Na próxima vez que você invocar a voz de um dispositivo, pense nisso — e peça para o seu assistente virtual observar um momento de silêncio em memória dele.

 

*Crédito da imagem no topo: reprodução

Publicidade

Compartilhe

Veja também

  • Quando menos é muito mais

    As agências independentes provam que escala não é sinônimo de relevância

  • Quando a publicidade vai parar de usar o regionalismo como cota?

    Não é só colocar um chimarrão na mão e um chapéu de couro na cabeça para fazer regionalismo