Mulheres na criação: Devs e Rachels da vida real
Os bastidores do Phyllis Project, iniciativa com a qual a rede DDB pretende ter 35% dos cargos de liderança em suas agências ocupados por mulheres até 2020
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Tempos atrás, comecei a assistir à série Masters of None pela Netflix. Criada e protagonizada por Aziz Ansari, é uma comédia que gira em torno de questões atuais como: ter ou não ter filhos, preconceito contra imigrantes e descaso com idosos. Recomendo. Foi numa dessas maratonas de domingo que cheguei ao 7º episódio da 1a temporada, intitulado “Ladies and Gentleman”, que trata de sexismo. Para este episódio, Aziz escalou duas roteiristas e uma diretora, que revisitaram experiências pessoais para dar autenticidade à história.
Depois de presenciar um episódio escancarado de assédio, o protagonista Dev decide apoiar a luta feminina. Mas tem dificuldade em perceber exemplos mais sutis de machismo no dia a dia: para ele, um executivo não se dirigir às mulheres da mesa só mostra que ele estava distraído. É nesse momento que Rachel, sua namorada, explica que, juntando todas as pequenas situações semelhantes que mulheres passam diariamente e que ele desconhece, fica claro que aquela não é a exceção, mas a regra. Dev, então, decide que o melhor a fazer é, em vez de tentar justificar, ouvir as mulheres.
Esse episódio de Masters of None vem num momento em que se discute como nunca antes a falta de mulheres no departamento de criação das agências de propaganda. Como Dev, muita gente interessada em fazer alguma coisa e, como Rachel, muitas mulheres querendo ser ouvidas. Mas, como no episódio, poucas soluções são apresentadas – a diferença é que uma série de TV não tem obrigação de resolver o problema.
No início do ano fui uma das 12 criativas de 9 escritórios da rede DDB de todo o mundo escolhidas para participar de uma iniciativa global pioneira no nosso mercado, o Phyllis Project. Nomeado em homenagem a Phyllis Robinson, a primeira Copy Chief da DDB e a primeira Copy Chief mulher da história dos EUA, visa reconhecer e apoiar talentos criativos femininos na DDB, com a meta de ter 35% dos cargos de liderança ocupados por elas até 2020. Para isso, conta com apoio de nomes de peso, como Amir Kassaei, CCO da DDB Worldwide, Lisen Stromberg, COO do 3% Movement, e Nancy Vonk e Janet Kestin, fundadoras do laboratório de liderança criativa Swim.
Durante dois anos, vamos ter mentoria, desenvolver um planejamento global de carreira, participar de trabalhos e eventos internacionais e de um treinamento em liderança criativa personalizado. Desde o kick off do projeto em março em São Francisco, na Califórnia, em que todos nos conhecemos –participantes, mentores, organizadores e consultores – já tivemos muitos outros contatos, treinamentos, reuniões em grupo, sessões individuais de coaching, e mais encontros presenciais, dessa vez em Cannes, durante o festival. O conteúdo tem sido tão enriquecedor, que é até difícil listar tudo. Mas, abaixo, uma listinha mais abrangente de percepções que achei legal compartilhar:
O interesse é real
Existe um interesse real por parte de muitas lideranças de equilibrar o nosso mercado e não apenas surfar a onda até ela passar. Dados do 3% Movement mostram que as mulheres influenciam mais de 80% das decisões de compra e detêm 60% dos compartilhamentos em redes sociais. É uma questão de sobrevivência – e também de lucro: um estudo do Peterson Institute for International Economics realizado no ano passado mostrou que as empresas que aumentaram a presença de mulheres em altos cargos tiveram crescimento de 15% na rentabilidade. Conclusão: mulheres são melhores? Não. Nem piores. Mas podem trazer pontos de vista, histórias, perspectivas e ideias diferentes. De qualquer forma, também é questão de propósito pessoal: às vezes, a gente se esquece de que, por trás de empresas, há pessoas. Pessoas com interesse genuíno de ser agente de mudança, fomentar um mercado com mais diversidade em todos os sentidos, e ajudar a criar um mundo mais justo para elas próprias, suas mulheres, suas filhas.
Mesmo problema, realidades diferentes
Conversando com as outras participantes, que vêm de países como Alemanha, Canadá, Índia e África do Sul, percebi que o problema se apresenta de forma diferente dependendo do mercado. Enquanto em alguns países a luta é por mais mulheres em cargos de liderança criativa, aqui no Brasil ainda estamos lutando por mais mulheres na criação. Na Alemanha, por exemplo, muitas agências têm metade do departamento ocupado por mulheres. Mas, segundo reportagem de 2016 do Meio & Mensagem, no Brasil, a presença feminina é inferior a 20%. Isso acontece devido a “n” motivos, muito mais relacionados a uma reprodução de padrões, como forma de educar meninos e meninas e critérios de contratação, do que por culpa de “x” ou “y”. Mas também pela falta de modelos inspiradores e porque existe a falsa crença de que mulheres não querem trabalhar na criação. Com isso, percebo que também tenho a responsabilidade de motivar garotas que estão começando na propaganda e mostrar para elas que é possível.
Mentor também aprende
Em São Francisco, fomos apresentadas aos nossos mentores, que deveriam ser, obrigatoriamente, de outros escritórios: o meu é Damon Stapleton, CCO da DDB Nova Zelândia, um cara que já foi até fotógrafo de guerra e que parece que foi escolhido a dedo para mim – e foi. Aricio Fortes, CCO da DM9DDB, meu “mentor involuntário” e responsável pela minha indicação inicial ao projeto, também é mentor de uma das mulheres. Como eu nunca tinha tido um mentor formal, achava que a relação de mentor e mentorada era de mão única: ele treinando, aconselhando, motivando, e eu perguntando, entendendo, recebendo. Foi curioso descobrir que muitos dos mentores do programa ficaram ansiosos, sem saber ao certo se seriam efetivamente úteis no nosso desenvolvimento. “Como dar mentoring a uma mulher, se não entendo os desafios e as dificuldades delas?” “Mas elas são tão incríveis, o que posso acrescentar?” Foi aí que entendi o outro aspecto da mentoria: ela é uma via de mão dupla. Nossos mentores também aprendem com a gente. Também são motivados pelos nossos desafios. E esse caminho inverso é extremamente importante. A mentoria também faz dos mentores líderes melhores: eles desenvolvem uma visão mais real e mais profunda do departamento e das pessoas que dirigem, aprimoram suas habilidades de relacionamento e aumentam a empatia. Isso me fez ter consciência do nosso papel, como mulheres, na construção de um departamento mais equilibrado e íntegro.
Eles não fazem ideia
Durante os encontros, percebi que muitos homens não sabem o que algumas mulheres vivenciam na criação. Em um dos exercício realizados, eles ficaram surpresos ao saber das experiências que foram compartilhadas naquele momento. São aquelas coisas que Rachel falou que Dev desconhece – e que acontecem em departamentos de criação do mundo todo. Felizmente, sempre tive a sorte de trabalhar em ambientes amigáveis e com pessoas conscientes, por isso essas situações nunca marcaram minha trajetória. Mas elas acontecem: desde as mais sutis, como encarregar a única criativa de pedir o almoço da galera ou sugerir que o trabalho dela foi aprovado só porque o cliente curtiu sua aparência, até as mais cabeludas. Como Dev, alguém que presencia uma dessas situações isoladas pode entender apenas como uma piada. Mas essas situações não são isoladas. E, piada a piada, criamos uma cultura. Isso mostra o quanto é importante, na minha opinião, envolver os homens em qualquer solução contra sexismo na propaganda. Segregar não é a resposta.
O poder do coletivo
Uma das maiores surpresas que tive, e continuo tendo, foi perceber como é legal conviver com outras mulheres criativas que compartilham experiências e dividem as mesmas aspirações e ambições. Quando não existe minoria, e diferentes grupos integram uma ordem maior, temos um time. Parece que tudo funciona melhor, todo mundo se relaciona melhor, todos se complementam. E, quanto mais diverso, mais isso se intensifica. Esse é o poder da diversidade que todos temos que buscar.
Fora a experiência pessoal, o projeto já está dando alguns frutos: das 12 mulheres participantes, 3 foram juradas no Festival de Cannes desse ano. E o propósito é justamente esse: que os benefícios não sejam somente internos, mas que sejam exportados para a nossa indústria – muito se fala sobre a importância de ter mais mulheres no júri de prêmios de propaganda. Nesses primeiros meses, já dá para aguardar ansiosamente pelo que está por vir. Como diz Amir Kassaei, “é uma gota no oceano, mas espera-se que gere muitas ondas”.
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