Assinar

O futuro que queremos

Buscar
Publicidade
Opinião

O futuro que queremos

Êxito dos filmes brasileiros em Cannes mostra o potencial do cinema nacional como indústria


2 de julho de 2019 - 11h33

Bacurau, de Kleber Mendonça Filho, ganhador do Prêmio do Júri no Festival de Cannes (Crédito: Reprodução)

Justamente celebrada, a participação brasileira no último Festival de Cannes deve ser também o ponto de partida para uma necessária reflexão sobre o mercado do cinema e do audiovisual no Brasil: sobre onde estamos e para onde queremos ir.

O talento e a criatividade de nossos realizadores foram mais uma vez reconhecidos: duas produções nacionais — A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, de Karim Aïnouz, e Bacurau, de Kleber Mendonça Filho — foram vencedoras da mostra paralela Um Certain Regard e do Prêmio do Júri da mostra principal, consideradas, respectivamente, a segunda e a terceira premiações mais importantes do festival. É uma demonstração clara do talento de cineastas brasileiros para dirigir filmes capazes de “viajar”, isto é, de dialogar com o público e a crítica de diferentes países.

É também uma demonstração do sucesso da política pública de fomento ao cinema e ao audiovisual construída pela Agência Nacional de Cinema (Ancine) ao longo dos últimos anos. Os números falam por si: indicadores econômicos sobre participação no PIB, geração de emprego e renda, aumento constante do número de filmes nacionais produzidos e lançados a cada ano. E mesmo a atenção crescente de grandes players como a Netflix ao mercado brasileiro mostram a vocação e o potencial do audiovisual para se constituir efetivamente como indústria. Este sonho, compartilhado por todos, ainda não saiu do discurso: fazer filmes, por si só, não gera uma indústria se não há foco no resultado econômico.

A realidade é que o setor ainda está longe de alcançar seu potencial em termos de estruturação econômica, sustentabilidade e empreendedorismo. Ao talento criativo de nossos realizadores e aos prêmios internacionais conquistados precisam se somar visão estratégica e capacidade de gestão. O reconhecimento em festivais no exterior não deveria ficar desconectado da realização comercial junto ao público doméstico.

Para isso, o mercado precisa se estruturar pensando a rentabilidade da exploração dos conteúdos em diferentes janelas, das salas de cinema à TV paga e ao vídeo on demand (VoD).

O cinema precisa ser pensado como criação e negócio: quando essas duas coisas se juntam, o conteúdo decola, local e globalmente. Mas, se na ponta da criação estamos bem na fita, na ponta da gestão ainda temos muito a crescer, sobretudo em capacitação: faltam oportunidades de formação para quem quer entrar no mercado como empreendedor criativo.

Sem a formação consistente e continuada de gerentes de projetos, executivos, agentes de vendas e empreendedores capazes de estruturar empresas e modelos de negócios lucrativos, o audiovisual será um pássaro com uma asa quebrada, incapaz de alçar grandes voos. É preciso incorporar à rotina do setor palavras como competitividade e produtividade, comuns em todos os ramos da economia, mas ainda raros no discurso do setor audiovisual. Precisamos ser tão competitivos economicamente como já somos artisticamente.

Nesse contexto, o desafio inescapável da Ancine é contribuir para a criação de um ecossistema que combine o talento de nossos realizadores com o empreendedorismo e competência na gestão. Cada vez mais, tão importante quanto injetar recursos públicos na produção de conteúdo será criar as condições para que o mercado comece a andar com as próprias pernas, buscando fontes diversificadas de financiamento, incluindo crédito, capital privado e mercado de capitais. Mecanismos como o Fundo Setorial do Audiovisual – FSA e a Lei do Audiovisual são necessários e devem continuar, mas em sua modelagem atual têm se mostrado insuficientes: a eles devem se somar linhas de crédito e outros instrumentos de financiamento de empresas dispostas a correr riscos e a crescer. Também é importante induzir a aproximação entre a universidade e os agentes econômicos, com a qualificação de um corpo docente capaz de formar quadros para o mercado, conectados com a realidade da prática profissional.

Um dos filmes brasileiros premiados em Cannes ilustra como é possível estabelecer essa ponte, ao reunir a força criativa do realizador e a competência do produtor/empreendedor: A Vida Invisível de Eurídice Gusmão foi produzido pela RT Features, de Rodrigo Teixeira, empreendedor de cinema que produz diferentes tipos de conteúdos audiovisuais para as mais variadas janelas: produz para o cinema independente americano e europeu, para diferentes realizadores brasileiros e estrangeiros, programadoras de TV, plataformas de VoD, com coprodutores de diferentes países. Além disso, compra direitos, adquire propriedade intelectual, forma carteira: é um gestor de portfólio diversificado de produtos, entre os quais se incluem o premiado filme de Karim Aïnouz e sucessos recentes como A Bruxa e Call Me By Your Name, Oscar de melhor roteiro adaptado. Não por acaso, Rodrigo Teixeira conseguiu levar ao Festival de Cannes três filmes diferentes, em três mostras diferentes, dois deles premiados: o de Karim Aïnouz, supracitado, e The Lighthouse, que venceu o Prêmio da Crítica na Quinzena dos Realizadores.

É preciso deixar de lado picuinhas, interesses pessoais, o apego às práticas do passado e entender que estamos todos no mesmo barco. Sobretudo no contexto de transição que atravessamos, com um novo governo e uma atenção maior dos órgãos de controle, exigindo ajustes na execução e análise das prestações de contas dos projetos, que outrora não mereceu a mesma atenção. O futuro da indústria do cinema e do audiovisual depende principalmente da criação de pontes e sinergias entre criadores e empreendedores, entre artistas e gerentes: o desafio é ter cada vez mais Rodrigos trabalhando com mais Klebers e Karims.

*Crédito da foto no topo: Reprodução

Publicidade

Compartilhe

Veja também

  • Quando menos é muito mais

    As agências independentes provam que escala não é sinônimo de relevância

  • Quando a publicidade vai parar de usar o regionalismo como cota?

    Não é só colocar um chimarrão na mão e um chapéu de couro na cabeça para fazer regionalismo