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Opinião

O terceiro banheiro é uma evolução da sociedade

A necessidade de categorizar as pessoas nesse ou naquele padrão de comportamento pode ser muito perversa


14 de junho de 2017 - 7h00

Crédito: Mauro Segura


“Se for menino será azul. Se for menina será rosa. Pensando bem, acho que é melhor amarelo, aí serve para os dois”.

Ao nascer, nós somos carimbados como homens ou mulheres. A raça humana teoricamente se resume a apenas essas duas categorias, as quais nos são impostas em função do órgão sexual que nos acompanha e que, por sinal, nós não escolhemos. Nós crescemos nos primeiros anos de vida sem ligar muito para isso; crianças pequenas não estão nem aí para esse negócio de ser menino ou ser menina, afinal, “somos apenas crianças”. Os adultos é que estragam tudo.

Ao ser categorizado como homem ou mulher, sem pedir, você automaticamente receberá uma série de expectativas de implicações sociais com base nessa característica binária homem-mulher, especialmente por força da própria família. Essas implicações sociais estão intimamente conectadas à cultura, religião, economia e, até, política. Ou seja, a complexidade é grande. Ao ser menino, automaticamente você terá que gostar de azul, de jogar futebol e ser combativo. Porém, se for menina, vai adorar a cor rosa, vai brincar de bonecas, gostar de vestidos rendados e será emotiva. Bem, pelo menos deveria ser assim conforme o cerimonial imposto pela sociedade. Mas, se o menino gostar de rosa, não sei não, hein? Isso tudo não é apenas complexo… é covardia, é maltratar o ser humano… é preconceito… pré-conceito.

A necessidade de categorizar as pessoas nesse ou naquele padrão de comportamento pode ser muito perversa. Nós não somos seres binários e isso torna a extensão do problema ainda maior. Determinar comportamentos adequados e em conformidade com um ou outro gênero significa impor segregação, exclusão e preconceito. Significa retirar a liberdade e a individualidade de cada ser humano. E, pior, representa marginalizar os que não se encaixam nestes padrões. O termo é esse mesmo, “marginalizar” significa “ficar à margem”. O mundo já sofreu muito e continua sofrendo com esses dilemas. Pense, por exemplo, se você tivesse vivido no início do século passado nos Estados Unidos, o país de maior poder econômico do mundo: se depararia com a existência de bebedouros para brancos e bebedouros para negros. Por que segregar o simples ato de beber água? Bem, essa é uma discussão mais extensa. Ahhh, e se você fosse pardo?

“Eu nasci homem. Depois senti que algo havia algo diferente. Eu não era um homem, mas também não me sentia mulher. Não era um problema de um ser humano num corpo errado, como tantos tentavam me convencer. E assim eu cresci, com a sensação de ser anormal, nunca gostando do meu nome, com um eterno conflito dentro de mim. Com o tempo eu entendi um pouco mais o que acontecia comigo, me adaptei a conviver com o desconforto social, mas duas coisas eu nunca me acostumei pois sempre me perturbaram profundamente ao longo da vida: quando alguém me pedia a carteira de identidade, eu nunca me vi naquele documento, e quando eu precisava ir a um banheiro público. Acho que ir ao banheiro sempre foi o pior”.

Desde crianças convivemos com a existência de dois banheiros: masculino e feminino. Acostumamo-nos com isso. Basta chegar à frente das portas e tomar uma decisão. É um ato banal, que fazemos quase sem pensar. Você não deveria ficar indeciso de que porta escolher. No entanto, esse ato diário que passa despercebido para a maioria de nós, não é tão simples quanto parece para algumas pessoas. Elas simplesmente não se identificam com os padrões e comportamentos do gênero que nasceram e têm um desconforto persistente com sua própria identidade de gênero, o que as leva a ter um sentimento de inadequação no papel social que lhes foi atribuído ao nascer.

Cabe aqui um esclarecimento: Identidade de gênero é o gênero com que a pessoa mais se identifica e que se apresenta para os outros. Há quem se perceba como homem, como mulher, como uma mistura de ambos ou mesmo como nenhum dos dois gêneros, independentemente do sexo biológico (macho ou fêmea) ou da orientação sexual (orientação do desejo: homossexual, heterossexual, bissexual ou assexual). É a forma como reconhecemos a nós mesmos e desejamos que os outros nos reconheçam. Isso incluiu a maneira como nos comportamos, nosso jeito de ser, nossos gestos, como nos vestimos, os acessórios que usamos, como falamos, enfim, é a gente como um todo, no mais amplo espectro.

Se não nos reconhecemos plenamente como homem ou mulher, a escolha de qual banheiro usar pode se tornar um martírio, pois os signos estampados nas portas, “homens ou mulheres”, funcionam como marcas que determinam espaços sociais destinados a assegurar a adequação entre os corpos e os códigos culturais que organizam nossas expectativas de gênero.

Para complicar ainda mais, aqui é momento de introduzir o conceito de transgênero, que é um conceito amplamente mal esclarecido. Para muitas pessoas, essa palavra carrega um caminhão de preconceitos. Não é uma questão de a pessoa ter nascido no corpo errado como muitos pensam, e nem uma questão sexual, é algo bem mais complexo do que isso. Basicamente, transgênero é um termo que abriga todos aqueles que não se identificam com o gênero atribuído a eles no nascimento e também quem não se identifica com gênero de forma alguma. E também não é algo pragmático. Com essa imposição da sociedade em nos classificarmos apenas como homens e mulheres, é possível que em determinados momentos da vida você se sinta menos homem, mais mulher, ou o contrário, não importa, o fato é que o conceito de transgênero é algo fluido, exatamente igual a nós, seres humanos, que convivemos com nossas incertezas, inseguranças, contradições e transformações. Por trás disso tem uma busca interminável de autoconhecimento de cada um de nós: quem realmente sou eu? É essa a beleza do conceito de transgênero. Esqueça sexo. É algo que nasce na profundidade da nossa mente, da essência da nossa existência, do que queremos e como vemos a vida. Todos somos seres humanos com liberdade de criação, expressão e propósito. Tirar isso é tirar a essência da vida humana.

Ao nos depararmos com esse cenário desafiador, o simples ato de ir ao banheiro tem por trás uma legião de conceitos amplamente controversos. Na IBM, onde eu trabalho, a empresa permite que os funcionários transgêneros utilizem o banheiro com o gênero que mais se identificam, ou seja, se o funcionário se sente mulher, então usa o toilette feminino. Essa prática é comum já em outras empresas e eventos nos quais se espera uma audiência LGBT+. Apesar de parecer algo básico, o mundo não é assim. Existem países, como por exemplo a Rússia e países muçulmanos, que a legislação proíbe essa prática.

A novidade que está sendo implantada na IBM Brasil agora em junho é o banheiro para Gênero Neutro, ou seja, o terceiro banheiro. Esses banheiros estão recebendo placas indicativas e tornam-se de uso individual com tranca na porta principal. Isso faz a diferença, especialmente porque a prática está sendo adotada em instalações que tem milhares de funcionários. Eu estou hiper feliz com isso porque acredito no propósito da decisão da empresa, que está plenamente em linha com os meus valores e crenças. Vejo o terceiro banheiro como uma espécie de banheiro unissex, multisex, chame como quiser, mas nunca chame de banheiro para trans, porque não é isso. O banheiro vai atender todos os gêneros. Qualquer um pode usar: mulheres, homens, cisgêneros, transgêneros, lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, todos, todos, todos, sem exceção. É território neutro, com conforto, banheiro com chave e privativo.

O terceiro banheiro não é uma novidade na sociedade, mas ainda raro em nosso país. O conceito já existe há anos, adotado por várias organizações, apoiado pela Human Rights Campaign – HRC – e traz um conforto incrível para as pessoas, em especial, aquelas em fase inicial de transição. É uma questão de respeito, de evolução da sociedade e compromisso com a diversidade.

Se você deseja conhecer mais a respeito do universo dos transgêneros, não deixe de ver essa incrível série de quatro episódios “Quem sou Eu?” que foi exibida no Fantástico. É esclarecedor e impactante.

Esse artigo foi desenvolvido junto com Adriana Ferreira, minha mentora, cuja inspiração e generosidade me permitem conhecer e entender cada vez mais esse universo. A Adriana me torna um ser humano melhor, #gratidão.

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