Pyr Marcondes
18 de junho de 2018 - 8h00
Eu não tenho nenhuma dúvida de que, sem o Festival de Cannes, ficaríamos órfãos perdidos sobre o que é ou o que deixa de ser comunicação criativa. É para isso que serve o Festival há décadas. Criar parâmetros e estabelecer um set mínimo de critérios.
Ooops! Critérios?
Em artigo esta semana no jornal Meio & Mensagem, o criativo brasileiro de carreira e sucesso internacional Ricardo Figueira coloca em cheque esses tais critérios do nosso mercado, afirmando que … ” a atual definição de criatividade no ambiente corporativo precisa urgentemente ser revista”. Isso porque, alerta ele, ela vem já com um carimbo limitador. Criatividade serviria apenas para resolver problemas. É para isso que é essencialmente convocada. “Já vem com pessimismo”, define.
No entender do Figueira, isso é uma estupidez já na origem (estupidez é por minha conta, ele não usou essa expressão, mas é a que eu acho que deveria de fato ser usada), porque limita o olhar criativo a um viés excludentemente negativo dos negócios.
Melhorar o que já está bom não vale então? Ou ainda, criar algo que não resolve problema algum, mas melhora a vida das pessoas, não vale também?
Que problema resolveu o iPhone? Nenhum. Ele, ao contrário, criou todo um novo segmento de negócios, toda uma nova indústria, estabeleceu um novo e nunca antes imaginado padrão de qualidade tecnológica e de produto no setor de eletro-eletrônicos, estabelecendo critérios de originalidade criativa que continuam sendo transformadores até hoje, para a companhia que o criou, para a vida de todos nós, consumidores, e para o comportamento da sociedade em geral, em todo o mundo.
A Apple é a companhia mais valiosa do mundo por que? Porque tem boas fábricas? Ela nem fábrica tem.
A Apple é a empresa mais valiosa do mundo por conta do seu elevado valor criativo. As demais bem colocadas nesse ranking, como Google, Facebook e Amazon, entre outras, estão nele também porque são inovadoras e criativas.
A criatividade corporativa migrou para o coração das atividades das empresas. Não é mais fru-fru, é o core do seu valor.
Mas Cannes não está nem aí para nada disso.
O Figueira fala também sobre outro tema conexo a criatividade, que é a inovação, alertando para o fato de que para que ela de verdade ocorra em nossa indústria, toda uma cultura corporativa obsoleta precisará mudar radicalmente.
Isso começa a acontecer com a chegada das startups e do espírito transformador digital, que inicia sua inexorável (e bem vinda) invasão do mundo corporativo.
Mas nada disso passa nem perto de Cannes.
Lá, julga-se excelência criativa de comunicação, certo? Mas pra que serve isso? Para que mundo e para que realidade, cara pálida?
O Festival continua entendendo criatividade como entendia há décadas. Super-úteis suas referências, mas para um mundo que não existe mais.
Este ano, o evento registrou um número bem menor de inscrições do que em anos anteriores. Isso porque os orçamentos para Cannes encolheram. E encolheram não apenas porque Sorrell e Sadoum assim o quiseram, mas porque o mundo dos negócios mudou. E seguirá mudando.
Na verdade, a atitude das grandes holdings é, ela própria, reflexo da mudança do eixo de relevância dos critérios da nossa indústria, hoje muito mais orientada e preocupada com outros KPIs.
Trata-se, portanto, de buscar incorporar à alma do Festival a alma de uma nova sociedade e de uma nova versão, 4.0, da criatividade. Uma sociedade conectada em rede, em que a transformação digital perpetra tudo e em que avanços de conhecimento e práticas de negócios se sofisticam na velocidade do tempo real. Essa é a nova criatividade. Cá entre nós, ainda mais abrangente e fascinante do que a já tão fascinante de sempre.
Como comenta o Figueira, “vivemos num mundo que nunca contou com tanta diversidade de recursos, tecnologias e possibilidades para surpreender necessidades ou expectativas”.
Nada disso, no entanto, tem sido refletido nos critérios, parâmetros, padrões e prêmios do Festival de Cannes.
Talvez nunca venha a ser. Sei lá.
Destaco que sou fã de carteirinha do Festival, ao qual já fui, se não me engano, 14 vezes.
Só que não vou a Cannes há uns 6 ou 7 anos, porque não vejo lá mais nada do que de fato me interessa. Temo que a indústria, nos próximos anos, comece a concordar comigo.
Sigo um admirador tecnicamente qualificado (sem falsa modéstia) do que lá se premia. Um admirador que entende e admira a beleza criativa das peças e campanhas leonadas. Eu ainda me emociono e choro diante de um comercial brilhante no horário nobre da boa e velha TV, a qual ainda continuo assistindo.
Mas o Festival, enquanto evento internacional com o porte e a relevância que tem para a indústria, terá que se transformar em sua essência. Assim como a sociedade e as empresas que tenta refletir.
Há aqui uma morte anunciada.
Ou Cannes muda ou pagará o alto preço de sua futura irrelevância.