Não sou especialista em nada – ainda bem
Para complementar a lógica das máquinas, precisamos cultivar a visão ampla, lateral e conectiva dos generalistas
Para complementar a lógica das máquinas, precisamos cultivar a visão ampla, lateral e conectiva dos generalistas
13 de junho de 2025 - 11h28
(Crédito: Shutterstock)
Uma das crenças limitantes (ideias que tomamos como verdade sobre nós, os outros ou o mundo) que ouço nas mentorias e aulas que dou é a percepção de não ser especialista em nada. Recentemente ouvi isso de uma aluna. Segundo ela, não ser especialista dificulta a recolocação profissional e a planejar o seu desenvolvimento de carreira.
Naquela conversa, me vi refletida. Também já carreguei esse peso. Durante anos, acreditei que isso era um problema. Mas, com o tempo, compreendi que há uma vantagem silenciosa em ser generalista, especialmente quando já se tem uma bagagem de experiências acumuladas. O horizonte, para quem navega por múltiplos campos, pode ser mais amplo do que o de quem mergulha fundo em um só. E será cada vez mais, em tempos de máquinas inteligentes.
Ser especialista é uma vocação legítima. O especialista busca excelência, domínio, segurança. Sua trajetória é construída em aprofundamentos sucessivos: da graduação ao doutorado, do conhecimento técnico à autoridade reconhecida.
Esse perfil, geralmente, não ambiciona liderar pessoas, mas, sim, refinar seu conhecimento. Em processos seletivos, é mais facilmente “encontrado”, já que há uma correlação direta entre o que a empresa busca (um hard skill específico) e o que o candidato oferece.
Já os generalistas muitas vezes não se encaixam nessa lógica. Por isso, não raro, se sentem deslocados. A correlação entre seu perfil e as exigências do mercado não é imediata nem óbvia. Mas isso não significa que ela não exista, apenas que atua em outro nível.
Os sistemas de RH e os portais de emprego não foram desenhados para valorizar os generalistas. Eles operam com base em palavras-chave e hard skills. E é aí que nasce a crença limitante: “não tenho lugar nesse jogo”. Quando, na verdade, você pode ser o curinga que o time precisa, só ainda não percebeu. É o que o futurista Ian Beacraft chamou de Generalistas Criativos: profissionais que conseguem transitar entre disciplinas, combinar insights, polinizar ideias e provocar saltos criativos.
Em 2014, quando Satya Nadella assumiu a presidência da Microsoft, ele enfrentava o desafio de transformar uma cultura organizacional rígida e hierárquica. Inspirado no conceito de growth mindset, da psicóloga Carol Dweck, Nadella introduziu uma mudança poderosa: trocar a mentalidade do know-it-all (sabe-tudo) pela do learn-it-all (aprende-tudo).
Segundo ele, o profissional do futuro não é aquele que sabe tudo, mas aquele que está sempre aprendendo. Gary Kasparov, o grande campeão de xadrez, contribui a esta previsão, já que ele sentiu na própria pele a rapidez que uma máquina leva para se tornar especialista. Ao perder para o supercomputador Deep Blue em 1996, ele entendeu o poder da máquina em aprender mais rápido aquilo que ele levou a vida treinando: “Tudo aquilo que conseguimos explicar e repetir, as máquinas farão melhor do que nós”.
E essa leitura ganha força diante da visão publicada na DocManagement no mês passado: “o futuro da inteligência artificial não é generalista, é especialista”. Ou seja, quanto mais especialistas forem as máquinas, mais generalistas precisarão ser os humanos.
A verdadeira força humana ainda está naquilo que a máquina não alcança: imaginar, criar narrativas, fazer conexões inesperadas, expressar emoções autênticas e compartilhar significados profundos.
Com o avanço da inteligência artificial, especialistas darão lugar aos chamados “hiper-generalistas”, profissionais que lideram times híbridos, compostos por humanos e agentes de IA, e que se destacam por habilidades como comunicação, adaptabilidade e pensamento crítico. É o que aponta um artigo recente publicado pela SmartBrief.
Nesse novo cenário, ganha protagonismo um tipo específico de perfil: o do generalista inquieto, curioso, multidisciplinar. São pessoas com sede de aprendizado que transitam entre áreas, acumulam referências, conectam pontos, articulam ideias, e que enxergam o que ninguém vê em uma reunião. São elas que quebram padrões, desafiam o status quo e trazem perspectivas frescas, muitas vezes importadas de outros contextos ou disciplinas.
Esse modo de pensar remete ao conceito de Visão Lateral, criado por Edward De Bono — a habilidade de chegar a soluções inovadoras por caminhos não óbvios, acessando o que ele chama de saltos criativos. É justamente essa lateralidade que desafia o modelo linear e previsível das máquinas, cujo poder está na profundidade analítica (Visão Túnel), mas não na criação espontânea.
A criação, portanto, continua sendo um território profundamente humano e cada vez mais necessário. Para complementar a lógica das máquinas, precisamos cultivar a visão ampla, lateral e conectiva dos generalistas. Essa lente mais ampla nos permite navegar melhor em cenários de incerteza, antes de irmos fundo em soluções específicas.
Ambas as visões são importantes, a expandida e a aprofundada, mas, no mundo que se desenha, o lugar da IA estará cada vez mais voltado à execução vertical, enquanto a criatividade humana se posiciona na abertura de novos caminhos.
É nesse sentido que David Epstein, autor do livro Range – Por Que Os Generalistas Triunfam Em Um Mundo Especializado, defende que os generalistas superam os especialistas em ambientes complexos e imprevisíveis: eles aprendem mais rápido, conectam saberes e resolvem problemas com repertório cruzado.
Um exemplo prático foi ilustrado no livro O Efeito Medici, no qual ele relata um evento entre John Gould, especialista em taxonomia, e Charles Darwin. Gould identificou com precisão que as aves coletadas por Darwin nas Ilhas Galápagos pertenciam a diferentes espécies, revelando a diversidade de sabiás entre as ilhas, mas foi Darwin, um generalista com formação ampla e olhar interdisciplinar, quem fez a descoberta mais transformadora: a ideia de que o isolamento geográfico poderia levar à formação de novas espécies.
Gould via as aves através das lentes das regras existentes; Darwin, livre dessas amarras, questionou as próprias origens dessas regras, inaugurando a teoria da evolução. A diferença entre eles ilustra como especialistas aprofundam o conhecimento existente (Visão Túnel), enquanto generalistas muitas vezes são capazes de conectar pontos e criar novas formas de entender o mundo (Visão Lateral).
Embora não haja uma origem única para a classificação de perfis “I”, “T” e “X”, esses modelos têm sido amplamente utilizados para descrever diferentes abordagens de aprendizado e desenvolvimento profissional, destacando a importância da integração de conhecimentos e da colaboração.
Este foi o tema de outro futurista, o Mike Bechtel, no SXSW deste ano, que defendeu que os líderes precisam evoluir de profissionais tipo “I” (profundos em um só tema), para o perfil “T” (com profundidade em uma área e visão ampla de outras), e, idealmente, para o perfil “X”: integradores, conectores de temas. Em tempos de complexidade crescente, precisamos de conectores, capazes de costurar campos de conhecimento, de traduzir o técnico para o humano, de unir opostos. Esse é o verdadeiro salto quântico das lideranças do futuro.
Ser generalista não é uma falha, crença limitante, ou ausência de talento. É cada vez mais um diferencial. Uma bússola criativa. Um superpoder.
Para quem quiser se aprofundar um pouco mais, compartilho um resumo da Metodologia M.A.P (Motivational and Attitudinal Profile), criada na Human/Rise, que mapeia nove perfis atitudinais em uma equipe. Dos nove, apresento os três que fazem referência ao “I”, “T” e “X”, respectivamente. Qual perfil mais te representa?
Representa profissionais com conhecimento profundo em uma única área. São especialistas que se concentram intensamente em um campo específico, adquirindo expertise detalhada.
Perfil: Disciplinado, analítico, curioso
Superpoderes: Foco, profundidade
Objetivo: Domínio, excelência
O conceito de profissional “T-shaped” ganhou destaque com David Guest em 1991. Nesse modelo, a barra vertical do “T” representa a profundidade de conhecimento em uma área específica, enquanto a barra horizontal simboliza a capacidade de colaborar e aplicar conhecimentos em diversas disciplinas.
Perfil: Persistente, competitivo, autoconfiante
Superpoderes: Prático, generalista
Objetivo: Domínio, excelência
O perfil “X” é uma evolução do “T”, enfatizando a habilidade de integrar conhecimentos de diferentes áreas para inovar e resolver problemas complexos. Embora não haja uma origem acadêmica específica para esse termo, ele tem sido utilizado por líderes e futuristas para descrever profissionais que conectam diversos saberes.
Perfil: Engenhoso, criativo, flexível
Superpoderes: Empatia, resiliência, persistência
Objetivo: Conexão, significado
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