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16 a 20 de junho de 2025 | Cannes França
Diário de Cannes

Gambiarra é gold!

Do cinema à favela, a inovação nasce do risco: coragem, gambiarra e criatividade como estratégias culturais de transformação


19 de junho de 2025 - 8h00

Seja nas colinas da Nova Zelândia ou nos becos do Capão Redondo, a inovação nasce do risco.

Durante o painel “Inovação, Tecnologia e Risco Cultural”, três nomes de peso – o cineasta Sir Peter Jackson, Ben Lamm (CEO da Colossal Biosciences) e Chaka Sobhani (Presidente Global da DDB) – trouxeram essa provocação ao centro da conversa: arriscar não é apenas uma decisão criativa, é uma estratégia cultural. É o que separa quem apenas acompanha a cultura daqueles que realmente a moldam.

Peter Jackson relembrou a aposta quase insana de filmar toda a trilogia de O Senhor dos Anéis sem nem saber se o primeiro filme funcionaria.

Já Ben Lamm apresentou sua startup, a Colossal Biosciences, que promete ressuscitar espécies extintas, como o mamute-lanoso, e viraliza ciência no TikTok com campanhas que somam mais de 390 bilhões de impressões.

Ambos empregaram tecnologia, dados e intuição criativa para contar histórias que atravessam o tempo e, não por acaso, foram criticados no início. Afinal, toda inovação verdadeira desafia as normas.

Mas o que isso tem a ver com as favelas brasileiras? Tudo.

Essa conexão foi magistralmente traçada por Thiago Costa, diretor de arte no iFood e fundador da agência Quintal, e Bia Lopes Maria, Associate Creative Director na Jotacom, TEDx Speaker, fotógrafa e fundadora da Quintal, além de criadora do projeto Re_Modelar.

Os dois criativos brasileiros comandaram uma das palestras mais impactantes do evento, defendendo a gambiarra como forma legítima de inovação, sustentabilidade e comunicação.

Nascido em uma favela, Thiago traz a influência da arte de rua para o design gráfico, unindo estratégia, inclusão e estética popular. Bia, mulher negra reconhecida como uma das 30 vozes que estão mudando a indústria da comunicação, segundo o Papel e Caneta, e destaque em premiações como The One Show, Clio Awards e Gerety, usa sua trajetória para conectar a criatividade brasileira com o mundo.

Enquanto Hollywood se arrisca com milhões em CGI e genética, as periferias brasileiras apostam, todos os dias, na criatividade como forma de sobrevivência. Lá, o risco não é calculado, é inevitável.

A gambiarra, frequentemente tratada com deboche, é na verdade um dos maiores legados de inovação já criados neste país. É o improviso que transforma sucata em impressora 3D, roda velha em churrasqueira, garrafa PET em abajur.

É também o que permitiu a uma mãe e filha em Pernambuco erguerem uma casa inteira com mais de 8 mil garrafas plásticas. Isso não é só solução, é revolução.

O que une Peter Jackson à favela não é a estética, mas a lógica: imaginar o que ainda não existe e, mesmo sem garantias, colocar de pé. Em ambos os casos, trata-se de criar valor a partir do improvável, seja com milhões em orçamento ou com o que se tem à mão.

E mais: enquanto o mercado global se impressiona com IA generativa, rejuvenescimento digital e deepfakes éticos, como o que Jackson usou com Harrison Ford em Indiana Jones e o Chamado do Destino, as favelas seguem fazendo “tecnologia de baixo carbono” sem nunca terem entrado numa sala de pitch.

A gambiarra é, afinal, uma inteligência coletiva, sustentável e profundamente humana.

Isso nos leva a uma pergunta desconfortável: por que a indústria criativa, tão preocupada com sustentabilidade e inclusão, ainda não aprendeu com a favela?

Hoje, data centers que sustentam plataformas de nuvem consomem 2% da energia elétrica mundial e a projeção é de que esse número dobre até 2030. Cada prompt em inteligência artificial pode emitir até 500g de CO.

Um filme rodado internacionalmente chega a emitir o equivalente a cinco carros durante toda sua vida útil. E, no entanto, a criatividade periférica, que resolve com reaproveitamento e mínima pegada ambiental, segue invisível aos olhos do mainstream.

A cultura da gambiarra, ao contrário do que muitos pensam, não é precariedade. É estratégia. É método. Um “manual prático” que parte de três perguntas: o que eu tenho? Do que eu preciso? Como transformar um no outro? Isso é design. É UX. É branding. Só que feito no fio do improviso, com consistência emocional e impacto direto na vida das pessoas.

Enquanto marcas buscam “movimentos culturais” que conectem com públicos jovens e engajados, talvez seja hora de parar de romantizar a favela e começar a escutá-la como força inventiva e intelectual.

Porque o que se viu em Cannes e o que se vive nas comunidades não são opostos, são polos de uma mesma força: a vontade de imaginar futuros. Com dados, com emoção, com propósito. Mas, acima de tudo, com coragem.

Muito se fala sobre inovação, mas pouco se pratica. Mesmo Peter Jackson, o aclamado diretor de O Senhor dos Anéis, enfrentou dificuldades para levantar um projeto que viria a arrebanhar plateias no mundo inteiro. Imagina, então, nós, pobres mortais.

O que o dia de hoje me ensinou é que resiliência e persistência também fazem parte do processo. Antes de tudo, é preciso continuar, mesmo quando ninguém acredita.

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