A marcha da insensatez

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Opinião

A marcha da insensatez

Uma preocupação vem me atormentando nos últimos tempos: a semelhança quase assustadora entre o que temos vivido e o caos que o mundo enfrentou na segunda metade da década de 1960. É como se 2018 fosse uma versão em farsa de 1968


18 de setembro de 2018 - 14h56

Crédito: Mucella/iStock

Dizem que a história se repete como farsa, o que significa que devemos viver em uma eterna farsa, já que tudo o que a história faz ao longo dos séculos é se repetir. Um dos livros que fez a minha cabeça nos anos 1980 foi A Marcha da Insensatez, da historiadora norte-americana Barbara Tuchman, duas vezes vencedora do Pulitzer. A obra trata de um dos grandes paradoxos da humanidade: a insistência dos governos em adotarem políticas contrárias aos próprios interesses. O livro cobre quatro conflitos históricos em que decisões erradas daqueles que estavam em posições de liderança tiveram consequências catastróficas: a Guerra de Troia; a Reforma Protestante; a Independência dos Estados Unidos; e a Guerra do Vietnã. A reflexão mais interessante, eu diria até assustadora, é a completa incapacidade de governantes (e governados) enxergarem quando estão repetindo exatamente os mesmos erros trágicos do passado — muitas vezes, um passado bem próximo. Em outra obra, Um Espelho Distante – O Terrível Século XIV, publicada em 1990, a autora fez preocupantes paralelos entre a vida contemporânea e um período quase esquecido da história da humanidade. Um desses paralelos envolvia a Peste Negra e a corrida nuclear, preocupação ainda presente nos dias atuais. A verdade é que, por mais paradoxal que possa parecer, se quisermos entender o futuro, precisamos olhar para o passado.

Fiz esse preâmbulo para compartilhar com vocês uma preocupação que vem me atormentando nos últimos tempos: a semelhança quase assustadora entre o que temos vivido e o caos que o mundo enfrentou na segunda metade da década de 1960. É como se 2018 fosse uma versão em farsa de 1968.

Se fosse possível visualizar o nível de felicidade da humanidade ao longo dos tempos em uma matriz, eu seria capaz de apostar que toda vez que houve extremismos nas posições políticas da população a felicidade foi menor. Nada gera mais infelicidade do que a divisão — e essa é a primeira similaridade dos tempos de hoje com o final dos anos 1960. É importante dizer que não estou falando só do Brasil. Os Estados Unidos, onde vivo, também atravessam uma fase de grande extremismo. A eleição de Donald Trump foi a parte mais visível de um debate irracional entre direita e esquerda, que vem se desenvolvendo há mais de uma década: de um lado, o Tea Party, um grupo de extrema direita dentro do Partido Republicano; do outro, os chamados Socialistas, que compõem uma ala de extrema esquerda abrigada no Partido Democrata. Esses grupos são minorias no conjunto do eleitorado, mas o barulho que fazem envenena o debate político no país a ponto de democratas e republicanos nem sequer assistirem aos mesmos noticiários de TV: democratas acompanham o mundo pela CNN e republicanos pela Fox. O mesmo ocorre com revistas e programas de rádio. É como se o mundo dos que estão do outro lado simplesmente não existisse. Mesmo países com uma longa tradição de tolerância e progressismo político não ficaram livres dessa fratura ideológica. Inglaterra, França e Alemanha tiveram processos eleitorais cheios de ódio, sendo que até mesmo a avançada Suécia vê surgir uma ala radical de direita, abrigada no partido que curiosamente tem o nome de Democrata.

No final dos anos 1960, a Guerra do Vietnã turvava a vista de todos e remexia ainda mais a dolorosa ferida da ideologia. Não importava o nível de atrocidades cometidos pelos dois lados do combate: radicais de esquerda veneravam o Vietnã do Norte, apoiado pela China comunista, enquanto os extremistas de direita iam até as últimas consequências com o Vietnã do Sul, suportado pelas Forças Armadas dos Estados Unidos. A verdade, como mostra o brilhante documentário The Vietnam, de Ken Burns e Lynn Novick, não estava com ninguém. Vale a pena ver as quase 20 horas desse trabalho de fôlego que ouviu 79 pessoas dos mais diferentes setores da sociedade, entre militares americanos que estiveram na guerra, pacifistas, historiadores, estudantes, militares americanos que se tornaram pacifistas, pais e filhos de combatentes, além de testemunhas inéditas num documentário ocidental: veteranos vietnamitas que lutaram dos dois lados do conflito. Além dessas entrevistas, há o brilho de uma trilha sonora com a melhor safra da história da música pop, justamente a que foi composta no calor daqueles momentos de convulsão. Bob Dylan, Beatles, The Hollies, Rolling Stones, The Youngbloods, Creedence, Buffalo Springfield, The Byrds, Jimmy Hendrix, entre outros, provam que a arte é importante em tempos de paz fundamental em tempos de crise. O único inconveniente para quem decidir assistir ao documentário, disponível na Netflix, é a certeza de que passará a compartilhar da minha sensação de que aqueles tempos sombrios parecem estar de volta.

Não temos, hoje, uma guerra composta de milhares de guerrilhas, como foi o Vietnã. Mas o terrorismo internacional traz a morte para as salas de nossas casas todas as noites, assim como a guerra de palavras odiosas nas redes sociais, com a embolorada e inútil noção de esquerda e direita, deprime, assusta e acaba fazendo vítimas psicológicas e até mesmo físicas. O maior problema desse radicalismo é ver as nações oscilando raivosamente entre dois extremos. No Brasil de hoje, como em muitos países, a única alternativa a um governo radical de esquerda ou direita parece ser um governo radical de direita ou esquerda. E esse insano pêndulo político tem algo de foice: conforme balança abruptamente, de um lado ao outro, vai cortando e destruindo tudo por onde passa. Se tivéssemos dedicado mais atenção aos livros de Barbara Tuchman, saberíamos que um governo radical, seja de esquerda ou de direita, jamais foi capaz de promover a felicidade ou o bem-estar de forma sustentável. Ditaduras sempre se tornaram fonte de trevas, perseguições e exclusão de direitos. Independentemente das intenções e valores dos ditadores ao chegar ao poder — de Hitler a Stálin, de Fidel Castro a Saddam, dos militares de direita do Brasil aos militares de esquerda da Venezuela —, o resultado final sempre foi (e sempre será) trágico. É por isso que, na hora de escolher um candidato, jamais cogitarei aqueles que adotam um discurso de divisão, de nós e eles, de escolhidos versus impuros, de guerra de classes, raças ou ideologias, seja esse discurso de direita ou de esquerda.

Porque o mal, não se iludam, é ambidestro. Ele escreve sempre as piores histórias, sempre por linhas tortas, tanto com a mão direita quanto com a esquerda.

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