Ela chegou lá: sobre vieses inconscientes e poucas mulheres no topo

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Opinião

Ela chegou lá: sobre vieses inconscientes e poucas mulheres no topo

As mulheres são criadas para "fazer as coisas direito". Com isso, muitas delas chegam ao mercado corporativo com uma postura de perfeição e de aversão ao risco


29 de abril de 2022 - 8h13

(Crédito: eamesBot/ Shutterstock)

Ela chegou lá! Nos últimos dias, li essa frase com certa frequência na imprensa, ao se referir a uma cantora brasileira que, além seu grande sucesso no país, está em carreira internacional ascendente e fez história ao ser a primeira cantora latina solo a chegar ao primeiro lugar no mundo em uma plataforma de streaming. Certamente o feito é de alegria e orgulho inenarráveis para todas que buscam ser reconhecidas em qualquer que seja sua área de atuação. 

Ao ler repetidas vezes essa manchete, não pude conter a reflexão de uma pergunta que tenho feito há muito tempo: quando todas chegaremos lá? Quando o fato de uma mulher chegar ao ápice de seu objetivo profissional não será mais tema de pauta? De forma alguma minha indagação desmerece a grande conquista da cantora ou de qualquer outra líder. É, portanto, apenas um exercício para tentar entender e atuar naquilo que é preciso para que possamos ocupar de forma igualitária os espaços de liderança. 

Contento-me em dizer que a L´Oréal Brasil, empresa que sou diretora geral de uma das principais divisões de negócio, tem ações efetivas para atingir a equidade: hoje, 51% dos cargos de liderança são ocupados por mulheres. Ainda, é a 3ª empresa do mundo, e a única na América Latina, a receber o Edge Lead - o mais alto nível da certificação, que avalia o equilíbrio de gênero em toda a carteira de talentos das empresas, incluindo igualdade de remuneração de gênero. 

Mas sabemos que essa é uma realidade distante da encontrada no resto do país. Dados do IBGE mostram que, apesar de mais instruídas que os homens, as mulheres ocupam 37,4% dos cargos gerenciais e recebem cerca de 23% menos. A disparidade é ainda mais alarmante quando sabemos que apenas 3% dos presidentes das 250 maiores empresas do país são mulheres, de acordo com pesquisa da Bain & Company. Olhando inclusive para um tema que nunca esteve tão em alta – a ciência – o cenário é parecido. As mulheres pesquisadoras no Brasil avançaram, elas são mais de 54% dos estudantes de doutorado, uma evolução de 10% nas últimas duas décadas. Mas ainda não estão tão bem representadas em posições de liderança. Na América Latina, não chegam a 2%. 

Por experiência própria, posso dizer que atingir essas posições de liderança é um exercício de resiliência e desbravamento. Já passei por situações de ter minha presença solicitada em reunião, porque assim, devido à minha aparência, conseguiríamos aprovar tudo e bateríamos a meta. De pedirem, em reuniões que estavam só homens, que explicassem temas diretamente pra mim, por desacreditarem que eu, como mulher, poderia entender o assunto. Conclusão: não fui à reunião, chamei atenção ao comentário sexista. Precisei me defender e me posicionar diversas vezes. 

E sei que momentos assim não foram exclusivos na minha trajetória. São recorrentes para todas as mulheres em suas jornadas de carreira, ainda que de formas diferentes e em narrativas interseccionais. Por isso, acredito na importância do compartilhamento de experiências e aprendizados entre nós. Com essa crença, tornei-me sponsor da GAIA, rede de empoderamento feminino da L’Oréal Brasil, que reúne mais de 120 colaboradoras com o propósito de discutir pontos pertinentes às mulheres, principalmente no ambiente de trabalho. E, a partir daí, sair do discurso e gerar o mais importante, a ação. Também tenho um grupo de mentoria com cerca de 10 mulheres – da L’Oréal e do meu círculo pessoal: pelo menos 2 vezes no mês, nos reunimos para tratarmos de assuntos profissionais e pessoais. Nesse momento, eu as ajudo a refletirem sobre suas questões, trazendo minhas experiências. E também aprendo muito com elas. 

Ao longo dessas sessões, percebi que muito do que compartilho em minhas mentorias é para desconstruir os vieses criados pela sociedade sobre as mulheres. Normalmente, as mulheres têm sua liberdade cerceada desde muito cedo. Há uma norma sutil que diz o que ela pode ou não fazer (“isso é coisa de menina” | “menina bonita se comporta assim”) e que reflete claramente na sua carreira e na sua autoestima. 

Nesse contexto, separei alguns dos principais pontos que podem limitar as mulheres e que, se trabalhados, tornam-se fortes alavancas no mundo corporativo. 

Dificuldade de Arriscar – As mulheres são criadas para “fazer as coisas direito”. Não há espaço para o erro, para desleixo, para a falha (e temos vários exemplos de como a sociedade cancela facilmente as mulheres que cometem um erro). Com isso, muitas delas chegam ao mercado corporativo com uma postura de perfeição e de aversão ao risco. Só se candidatam a vagas quando estão 100% prontas (vs. 60% da audiência masculina) e caem mais vezes do que os homens na síndrome de impostor. 

Dificuldade de se vender – Também relacionado à autoconfiança e externalização da ambição, as mulheres em geral tem dificuldade de assumir seus sucessos, receber elogios, de se autoelogiar e traçar planos mais grandiosos. Elas têm medo de serem julgadas como arrogantes e egoístas, até porque o que é esperado delas é uma função mais protetora, dócil e coletiva. Isso afeta questões muito básicas como a capacidade de storytelling, de construção de um currículo e até mesmo de contar sua trajetória numa entrevista.  

Defender o espaço feminino – Não é uma questão, mas algo que acho fundamental e trabalho com todas as minhas mentoradas: proteja a imagem de outras mulheres. Ouço (e já ouvi) falarem muito mal de outras líderes num tom estereotipado e preconceituoso (com forte viés): “a fulana é muito emocional”, “a sicrana é muito centralizadora”, “a beltrana é muito autoritária”. Em geral, o comum não são as falhas entre essas líderes, mas o filtro e o viés que as cercam. Sempre que as pessoas me trazem estes chavões, peço para me contar um exemplo e refletir se a avaliação seria a mesma se a pessoa fosse um homem. Incentivo muito que minhas mentoradas façam o mesmo dentro de seus universos. Mudar o inconsciente coletivo da liderança feminina é um papel de todas e todas nós ganhamos com isso. 

Enquanto seguimos, lutando com nossas muralhas internas e externas, foquemos em chegar lá. Até que esta não seja mais uma questão. 

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