A arte de fazer parecer

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Opinião

A arte de fazer parecer

As projeções nas mídias sociais mais bem-sucedidas são especialistas em esconder suas intenções


3 de fevereiro de 2022 - 10h44

(Crédito: Johanna Svennberg/ iStock)

Nada é o que parece ser ao mesmo tempo que tudo é o que se faz parecer. Essas duas frases têm sentidos aparentemente opostos, mas significados complementares.

Pessoas e marcas se beneficiam o tempo todo seguindo essa premissa. Parecer interessante, influente, sexy, engraçado ganhou importância sem precedentes nas publicações com alto alcance orgânico em plataformas sociais como TikTok ou Reels no IG. A lógica ganha traços dramáticos em publicações “tipo Top Voice” em que parece não haver limite para passar vergonha e nem crivo crítico ao show de obviedades.

Independentemente da plataforma social, todos somos, de certa forma, coagidos a atuar e nos fazer parecer. No passado essa era uma lógica em que a publicidade cansou de se fazer valer. Entretanto, agora, o uso dessa premissa não é mais exclusivo e sua ampliação fez com que tal comportamento ganhasse camadas de sofisticação.

As projeções nas mídias sociais mais bem-sucedidas são especialistas em esconder suas intenções, mas não só. O código de sua linguagem muitas vezes só pode ser decifrado por uma comunidade que compartilha da mesma chave de acesso.

Explicar o Meme para o tio, quem nunca?

– Tio sem entender mesmo com a explicação, um clássico.

O Meme, talvez, seja a expressão máxima desse código compartilhado. As sátiras, deboches e o humor que tomam partido do oprimido e não do opressor são um exemplo de crença que dá origem a uma série de manifestações para o estudo e aprofundamento da memética.

Segundo Saussure, o signo não une uma coisa a uma palavra, mas um conceito/significado a uma imagem acústica/significante. No Meme, é como se o signo pudesse ter um conceito/significado muito mais complexo e o significante pudesse assumir diferentes versões dele mesmo.

Por exemplo, a simples imagem de um jovem bem arrumado, em o “meme do riquinho” pode esconder uma sátira com uma crítica velada à sociedade. Essa mesma imagem tem origem com significado diferente e assumiu inúmeras variações de seu significante.

Dominar o código de uma comunidade não quer dizer, necessariamente, acreditar em  seus valores, mas poder transitar e usá-la a seu favor. Jogar o jogo de uma linguagem que pode chegar criptografada separa os meninos dos tios. Isso tem um valor maior do que se acredita. É preciso parecer para pertencer. É um jogo de manipular o que se quer mostrar.

“Assim é se lhe parece”, disse Luigi Pirandelo. O fato é que não importa muito quem você é, desde que as pessoas acreditem no que se precisa parecer ser. O contrário é ainda mais perverso.

Cada vez menos sabemos quem está do outro lado. Idolatramos, aplaudimos e damos fama a quem melhor parece ser. Isso é assustador.

Nesse período distópico que persiste, até a ideologia pode ser manipulada para benefício próprio, uma agenda escondida. Não nos tornamos apenas em uma sociedade cínica, mas fomos além. Na busca de ser um contraponto ao negacionismo, nos transformamos em máquinas de falar o óbvio. O código linguístico tem perdido sua inteligência e muitas vezes se iguala aos mesmos níveis de quem se quer opor.

Criticar o desmatamento é o mínimo. Argumentar com o mesmo nível de quem defende o desmate porque os países do exterior já o fizeram; está prestando um desserviço. Batemos palma para “Don’t look up” sem fazer o mínimo esforço em perceber a fragilidade da sátira. Um filme que não te faz rir, que não te conta nada novo. É apenas um monte de obviedades que não acrescentou nada, o máximo que conseguiu foi fazer os negacionistas gostarem do filme.

Estamos condenados a elogiar uma linguagem normativa em função de tirar proveito para nossa própria narrativa. Usamos a imagem da bebê Alice como Meme sem ao menos nos perguntar a consequência à criança.

Isso só mostra que, ao invés de manipular o que se quer mostrar, na real, somos “vítimas” do próprio código compartilhado. Imagine isso em uma profundidade de experiência, como o Metaverso se propõe.

Na tentativa de se beneficiar, corremos o risco de nos tornarmos aquilo que mais criticamos sem nem ao menos perceber. Parecer sem perceber. Em outras palavras, vergonha alheia.

Essa é a arte de se fazer parecer, mas podemos chamar como tendência do Metainverso.

*Crédito da foto no topo: Nazarkru/ iStock

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