A todas as Barbies Estranhas
Nosso mercado ainda está engatinhando no que diz respeito à representação não normativa de gênero
Nosso mercado ainda está engatinhando no que diz respeito à representação não normativa de gênero
Esse não é mais um texto sobre a Barbie.
É um texto que usa um tema que todo mundo está falando para falar sobre um assunto que ninguém parece querer ver: o enorme atraso da discussão interseccional de gênero.
Os anos passam, grupos surgem, premiações crescem, mas a verdade é que ainda estamos engatinhando na representação não normativa de gênero. Nada contra os vestidos, saltos altos e cabelos longos, mas cadê as outras possibilidades de ser mulher? Eu sei, estamos evoluindo. Mas me incomoda dizer que hoje, agosto de 2023, ainda não tenho NENHUMA referência que seja, ao mesmo tempo, mulher, negra e lésbica desfem (que foge à norma da feminilidade) no mercado de comunicação. É como se elas simplesmente não existissem. Ou como se fossem Barbies Estranhas demais para viverem em volume em meio às outras Barbies.
Se você não sabe do que estou falando, um parêntese: a Barbie Estranha é uma personagem do filme que foge ao padrão por ter marcas no rosto, cabelo curto e colorido. Por ser tão diferente das demais, ela vive isolada – e olha que, no caso dela, ainda estamos falando de uma personagem branca, loira e de vestido rosa.
Voltando à realidade, o incômodo de me sentir um pouco Barbie Estranha com a roupa “masculina” que uso, com meu cabelo curto e minha não feminilidade na maioria dos eventos sobre gênero que frequento, não é um sentimento exclusivamente meu. Nem apenas ligado aos recortes identitários que eu represento, infelizmente. Talvez você também sinta ou conheça alguém que se sente “Estranha” nesses espaços. Eu mesma já escutei desabafos de amizades trans, não bináries e 50+, só pra citar alguns exemplos.
E essa sensação de exclusão também está presente nas universidades. Em uma aula que dei em parceria com a ONU Mulheres para universitárias de Recife que pensam em trilhar carreiras criativas na comunicação, me fizeram uma pergunta: como acreditar que você pode realmente ocupar um espaço quando não há referências lá? A pergunta delas se refere a lideranças de comunicação que sejam mulheres, indígenas, nordestinas e LGBT+. Em alguns casos, os quatro ao mesmo tempo.
A verdade é que, para Barbies Estranhas, que fogem à norma do mercado, dificilmente existe uma referência completa, que represente ao mesmo tempo tudo o que somos. E esse é um erro do mercado, não nosso. Mas, sem referências, pode ser difícil medir a autoestima e acreditar que há um caminho possível a seguir. Por isso, Barbies Estranhas, esse texto é pra vocês.
Vocês são potência. Mas quando o cansaço bater – e ele vai – lembrem que podemos nos sentir menos sozinhas buscando referências de uma forma mais ampla, como se ela fosse uma matriz com dois eixos (imagine uma cruz): no eixo horizontal estão nossos iguais. Por mais que não representem a totalidade de quem somos, estão passando por desafios próximos, independentemente do cargo que ocupam ou área em que trabalham. Eles são nossa fonte de acolhimento, de troca, de pertencimento. Na parte vertical superior está a referência que você precisa enxergar, olhando pra cima, aquela que te faz achar possível, que te serve de exemplo como liderança. Essa é a referência que vocês talvez não tenham. Nesse caso, podemos aprender com os fragmentos delas: pessoas que não nos representam em sua totalidade, mas que representam parte de nossa identidade e que têm conseguido hackear o jogo. Elas podem ser nossas maiores aliadas, conversem com elas. Já na parte vertical inferior estão todas as pessoas que se espelham em vocês. À medida que você sobe, você se torna a referência que elas nunca tiveram e isso pode ser o combustível que às vezes você vai precisar para continuar: ser a referência que você não teve.
E se, ainda assim, ficar difícil acreditar em você – afinal, meritocracia não existe e sabemos disso na prática – me permitam dar um quase spoiler sobre o filme e um recado ao mercado e a todas as Barbies e Kens “não estranhos” que estão lendo este texto: em um determinado ponto da história, as Barbies precisam de ajuda e recorrem à Barbie Estranha para terem um novo ponto de vista e encontrarem uma solução. A Barbie Estranha, que nem era a protagonista, definitivamente é quem salva a história – e rouba a cena. Imagina só o que seria da Barbieland sem ela?
Difícil imaginar, né?
Que também seja difícil imaginar a ausência delas em nossos eventos e em nossas empresas.
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