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Mudar de língua significa deixar de lado a nossa espontaneidade, perder a sutileza do tom de voz e a habilidade de usar a palavra certa na hora certa
Mudar de língua significa deixar de lado a nossa espontaneidade, perder a sutileza do tom de voz e a habilidade de usar a palavra certa na hora certa
“Eu não aprendi inglês morando fora, eu só desaprendi português mesmo”.
O redator Rodrigo Rocha me saiu com essa ao me responder sobre um meme de um brasileiro que mora no exterior e esquece o passado do verbo saber. “Sabido? Soubédo? Soubido?”, questiona o rapaz, em looping.
O vídeo me fez rir e pensar. Lembrei de quando o meu dupla Alexandre Kazuo e eu aceitamos o convite do Ícaro Dória (hoje copresidente e CCO da DM9) para ingressar na Hill Holliday, em Boston. Passada a euforia da contratação, veio aquela ansiedade por tudo o que envolveria a mudança. Será que eu dou conta de trabalhar em inglês? Apresentar campanhas, tocar reuniões, argumentar com o cliente?
Criar é uma tarefa árdua. Em outra língua, então, nem se fala. Tudo se torna ainda mais difícil porque, na minha concepção, o trabalho do redator passa não só pela necessidade de escrever bem, como pela capacidade de saber escrever mal. E eu digo “mal” no sentido de brincar com a língua, subverter a lógica, cometer “erros” que façam o texto soar mais informal e mais fluido. Não estou falando do inglês casual para pedir um hambúrguer. É o inglês jedi. Um repertório que, invariavelmente, requer prática, tempo e vivência.
Mudar significa deixar de lado a nossa espontaneidade, perder a sutileza do tom de voz e a habilidade de usar a palavra certa na hora certa. Sabe aquela piada que faria todos no elevador rirem? Talvez ela venha três horas depois, quando você estiver na sua mesa trabalhando. A ida para outro país nos faz reavaliar a nossa competência. Em alguns momentos, você está apenas torcendo para aquela reunião intensa acabar logo. É muito frustrante.
Eu lembro que, ao chegar nos Estados Unidos, um amigo me aconselhou a ser paciente com as minhas limitações. “Como brasileiro, você demonstra uma paixão muito grande pelo trabalho. Quando dominar ainda mais a gramática, vai escrever com uma emoção que talvez poucos aqui consigam”. Eu concordo e até acrescentaria outros efeitos positivos a isso. Morar fora nos devolve a perplexidade sobre o mundo. É como chegar na casa de alguém e perceber que algumas coisas estão fora do lugar, porque o dono da casa não consegue, já que se acostumou com a maneira com que os objetos estão dispostos.
O escritor pernambucano Marcelino Freire conta que quem lhe deu sotaque foi São Paulo. Uma afirmação que caminha na mesma linha da abordagem antropológica que diz “quando eu nomeio, eu me nomeio”. Ou seja, ao falar sobre algo, estou, na verdade, revelando quem eu sou. Daí, a ideia de que estar fora do nosso contexto original também ajude a demarcar a nossa individualidade. Mudar de país é sair do lugar imaginário, geralmente confortável, onde antecipamos o outro, e perceber que esse outro é tão estrangeiro para você quanto você é para ele.
Aqui, eu abro parênteses para esmiuçar essa palavra. Na definição em português, estrangeiro é quem vem de outro país. Mesma origem etimológica de stranger (em inglês, estranho, desconhecido). Fonte que também resultou na expressão “te extraño” (sinônimo de saudade, em espanhol). Palavras que compartilham o mesmo berço, mas que, ao longo do tempo, ganharam contornos diferentes para acomodar necessidades específicas de cada cultura. Se pararmos para pensar, o “te extraño” mostra que, ao nos afastarmos de alguém, podemos nos tornar desconhecidos e sentir falta da relação que tínhamos anteriormente. Uma observação que só faz sentido se extrapolamos nossas fronteiras e percebemos o que está ao redor.
Há muitas outras descobertas que surgem nesse percurso. A despeito das dificuldades, aprender uma segunda língua já adultos nos permite selecionar palavras que, na infância, não conseguimos, simplesmente porque não há consciência no processo. A criança só ouve e repete. Recentemente, eu mesmo vivi uma história que me marcou. Até o começo do nosso relacionamento, a minha namorada não conhecia absolutamente nada de português, e as suas primeiras palavras foram um tímido, mas indescritível, “eu te amo”. Não é bonito pensar que de todas as expressões possíveis de uma língua, a sua escolha tenha sido pela frase mais importante de todas?
Volto ao início do texto. Ao contrário da brincadeira lá de cima, percebo que, no fundo, eu nunca aprendi tanto sobre português quanto agora, que uso o inglês o tempo todo. Entendi que redatores estrangeiros têm mesmo muito a perder com uma mudança. Por outro lado, há algo muito valioso que só nós podemos oferecer: o olhar destreinado para o que é aparentemente usual e corriqueiro a um nativo. No fim das contas, mudar para outro país é sobre perdas, sim. Mas, principalmente, sobre o que se encontra em cada tradução.
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