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Opinião

Legião Urbana no STJ: a institucionalização da pirataria

Tomada pelo sentimento de pertencimento, a maioria dos ministros cometeu um equívoco que abre perigoso precedente a todos os proprietários de marcas no país


27 de julho de 2021 - 6h00

Recentemente, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou a longa e controversa disputa em torno do uso da marca Legião Urbana – banda de rock dos anos 1980 que se transformou em patrimônio nacional. A propositada expressão “patrimônio nacional” aflora a emoção de pertencimento. Afinal, a banda é nossa, dos milhares de brasileiros que se identificam com as músicas, que usam as palavras de Renato Russo para dar nome e entender ou dar suporte a sentimentos e opiniões. A Legião Urbana faz parte da história de muita gente.

E, justamente tomada pelo sentimento de pertencimento, talvez até de intimidade, a maioria dos ministros cometeu um equívoco que abre perigoso precedente a todos os proprietários de marcas no país. Em votação apertada, por 3 votos a 2, os ministros mantiveram aos ex-integrantes da banda o direito de usarem a expressão Legião Urbana para fins comerciais como verdadeiro sinal distintivo, sem a autorização da titular exclusiva da marca, a empresa Legião Urbana Produções Artísticas Ltda.

Os direitos relativos a marcas no Brasil são regulados pela lei 9.279/96, a lei da Propriedade Industrial, que determina que a proteção dos direitos relativos à propriedade industrial se dá pela concessão do registro pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). É por meio do registro que se adquire a propriedade de uma marca, assegurando o uso exclusivo em todo o território nacional, garantindo ao titular o direito explorá-la, inclusive através de terceiros.

A marca Legião Urbana indiscutivelmente pertence à empresa Legião Urbana Produções Artísticas, registrada perante o INPI desde 2000, em decorrência de um pedido de registro em 1987. Naquele ano, os músicos da extinta banda detinham cotas da empresa, mas venderam suas respectivas participações a Renato em 1988. Havia um regime de copropriedade regulado por um contrato social, que foi abandonado mediante retribuição pelo demais coproprietários. Conjuntamente com o estabelecimento de um condomínio, na época, a constituição de uma sociedade era a forma legal de se ter uma marca em copropriedade. Com efeito, o que o julgamento no STJ fez foi ignorar a extinção da copropriedade e esvaziar a marca, pois retirou do seu titular o direito de excluir terceiros. Na visão de muitos o principal direito de um proprietário de marca.

Apesar do contexto emocional que a questão carrega, tal decisão não pode ser baseada em sentimentos, mas, sim, na lei. Ao contrariar o que determina a lei de propriedade industrial – que garante exclusividade de uso ao titular da marca registrada na autarquia competente – o Judiciário institucionalizou a pirataria.

Parece uma comparação exagerada, mas a pirataria é exatamente a venda ou distribuição de produtos ou serviços sem a expressa autorização dos proprietários de uma marca. Ou seja, cada vez que um ingresso com a marca Legião Urbana é vendido sem a autorização da Legião Urbana Produções Artísticas, no rigor da lei, seria um ato de pirataria. Como assim? Imaginemos que Renato Russo ainda estivesse vivo. Compro ingressos para o show “Legião Urbana”. Quando a banda sobe no palco. Aparecem todos menos Renato. O show começa, acaba, toca o repertório da banda com um vocalista afinado. Mas sempre sem Renato Russo. Qual o seu sentimento?

A longa e controversa disputa em torno do uso da marca Legião Urbana foi julgada pelo STJ (Créditos: Sora Shimazaki/Pexels)

Ainda, qual seria a sua reação se, na década de 80/90, ganhasse uma fita ou um álbum da Legião Urbana mas sem a voz do Renato Russo? É uma fita pirata ….

A afirmação carrega uma agressividade compreensível por causa da dimensão emocional, e até social, que o caso Legião Urbana tomou, mas fica mais evidente se entendermos que a marca Legião Urbana é um bem móvel como outro qualquer. Três amigos super entusiasmados, resolvem construir um barco. Cada uma com uma capacidade diferente, habilidades diferentes. Quando terminado, aproveitavam a vida, davam festas, chamavam outros amigos, enfim só diversão. Até que dois deles resolveram vender as suas partes do barco. Seu pai, proprietário remanescente, morre e deixa o barco para você. Sem nenhum manual. O barco exige cuidado, manutenção, dinheiro. Às vezes você tem que alugar para não ficar parado e cobrir as suas despesas. Enfim, você aprende o ofício. De repente uma decisão judicial determina que você deixe que os dois (ex) amigos do seu pai utilizem o barco, deem festas, aluguem para terceiros use seu combustível, tudo isso porque um dia fizeram parte da sua construção, ainda que tivessem abandonado o mesmo.

Pode-se vestir da forma que quiser o caso concreto, mas esse foi o tamanho da insegurança e do precedente que foi aberto.

A questão perpassa por um problema histórico, social e cultural do nosso país – a falta de respeito e de incentivo à criação imaterial, inovação e à pesquisa. Quando falamos de um bem material, a regra é inquestionável: quem registra é o dono. Mas quando nos referimos ao direito marcário, imaterial e intelectual, mesmo sendo detentores de uma das legislações mais modernas do mundo, a delimitação da propriedade impõe seus desafios e fica passível às mais diversas discricionariedades, e o resultado é a insegurança jurídica que afeta todo o ambiente de negócios.

Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicam que 90% das empresas no Brasil possuem perfil familiar, chegando a representar 65% do Produto Interno Bruto (PIB). Muitas delas carregam o nome da família como marca. Imagina se todos os que venderam suas marcas familiares para grandes empresas nacionais e internacionais se arrependessem e pedissem na Justiça o direito de usarem os nomes comercialmente?

Ray Kroc comprou a parte de Dick e Mac Mc Donald na empresa, inclusive vários ativos como a marca Mc Donald´s e abriram mão de manter sua loja McDonalds. Depois disso os irmãos lançaram outra lanchonete com o nome de The Big M. Faliram. Como seria o desfecho desta história de acordo com o STJ?

O STJ estabelece uma expropriação atípica, visto que não há previsão na lei de propriedade industrial para expropriar uma marca que não seja pela falta de uso, também chamada de caducidade. Não há previsão legal expropriação de marca por utilidade ou interesse público, diferente do que ocorre em patente. Ao fazer isso o STJ legisla, avançando em sua competência.

A proteção ao direito de propriedade de uma marca é fundamental para qualquer empresa, seja ela de bens materiais ou imateriais. O Brasil é um país com alta capacidade de investimento e desenvolvimento. É terreno fértil, carente de inovações tecnológicas, com potencial imenso de atração de investidores estrangeiros. Entretanto, decisões como a do caso Legião Urbana, apesar de parecerem específicas, contribuem muito para o risco Brasil, o indicador que afasta os investidores que não estão dispostos a enfrentar as nossas mazelas judiciais, especialmente, quando há uma grande chance de surgimento de gambiarras jurídicas que contrariam a legislação vigente.

A eficiência do sistema econômico exige a efetividade da segurança jurídica. São apontados como requisitos para o bom funcionamento de uma economia de mercado: i) o respeito e a garantia do direito de propriedade; ii) o cumprimento dos contratos; iii) a presença de mecanismos isentos de resolução das pendências (conflitos de interesses). A segurança jurídica é pilar do Estado Democrático de Direito e do bom funcionamento da economia de mercado.

Um país que necessita urgentemente de uma retomada econômica não pode se dar ao luxo de gerar insegurança em quem está disposto a trazer desenvolvimento, emprego e renda para a nossa população. Direitos individuais, difusos e de empresas não podem ser relativizados. Se há equívocos na legislação, ela pode e deve ser aprimorada, mas o Judiciário precisa estar ancorado na legislação, por mais que a letra fria da lei pareça fria demais para a situação.

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