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O privilégio que você não vê

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Opinião

O privilégio que você não vê

Até mesmo a diversidade precisa de mais diversidade para fazer acontecer as três coisas das quais mais precisamos agora: consciência, voz e atitude


13 de novembro de 2017 - 17h15

O 3 Percent Movement nasceu para discutir a ausência estatística de mulheres na liderança da publicidade, nas salas de trabalho e no conteúdo, ajudou a mudar a relação entre homens x mulheres na direção de criação das agências americanas e hoje, na sexta edição de sua conferência anual, realizada em Nova York no início do mês, busca ampliar perspectivas além do gênero. O movimento foi batizado de 3% porque seis anos atrás apenas 3% dos diretores de criação nos Estados Unidos eram mulheres. O número aumentou a cada ano e hoje chegou a 29%.
Faz sentido que seja assim. Até mesmo a diversidade precisa de mais diversidade para fazer acontecer as três coisas das quais mais precisamos agora: consciência, voz e atitude. Não em tempos diferentes. Precisamos delas acontecendo ao mesmo tempo.

É disso que Jill Soloway, escritora e diretora da série Transparent do Netflix falou na The Makers Conference, em fevereiro. Colocando na mesa sua história pessoal, Soloway demonstra como as palavras homem e mulher definem apenas o que nos acostumamos a ser e o quanto precisamos evitar o lugar binário onde elas nos colocam para que tenhamos acesso a novos significados. Foi a consciência adquirida por Soloway enquanto se entregava a sua transexualidade e se descobria não-binária que definiu seu lugar de fala e atitude. Dois de seus trabalhos, I Love Dick (Amazon) e Transparent, provocam novas consciências em relação a referências de gênero e feminismo. O The Guardian disse uma vez que ninguém cria personagens femininas tão originais quando Soloway. É verdade. Jill Soloway cria personagens femininas a partir de sua própria complexidade e a partir da consciência de que existem seres humanos diferentes dela.

Durante a 3% Conference, Torsten Gross, head of strategy da JWT NY, mostrou a sua perspectiva de cadeirante. Ele compartilhou a mudança na sua consciência pessoal e lugar que representa antes e depois do acidente que o fez perder os movimentos de parte do corpo. E como percebeu uma mudança agressiva na maneira como as pessoas se referem a ele – ele sente que passou a ser definido como “o cara da cadeira de rodas”, enquanto evidentemente ele é muito mais do que isso. A fala dele, como a de muitos outros, trouxe para a prática o tema deste ano da conferência: “Além de gênero”. A discussão se ampliou para muito mais do que a conversa sobre homens e mulheres, passando a focar a mudança no status quo e nas práticas históricas da indústria que priorizam poucos grupos sociais e deixam grande parte de fora, diminuindo muito a quantidade de pontos de vista na mesa e impossibilitando o espelhamento da sociedade dentro das agências. “Nós estamos ficando grandes e isso tem deixado muitas pessoas com medo”, afirmou Kat Gordon, fundadora do 3% Movement para o The New York Times.

A consciência sempre foi um vetor de transformação e é muito necessária agora. Cada um de nós, a partir de sua posição, estamos todo o tempo tomando decisões e criando exemplos, referências e conteúdos capazes de acelerar ou não processos de mudança. Do lugar de consciência onde cada um de nós já chegou, precisamos ocupar ainda mais nosso lugar de fala e agir. Fazer todas as pessoas que estavam lá perceberem isso foi algo muito presente na 3% Conference.

Por que tudo isso é tão importante quando falamos de negócios? Porque corporações e marcas são sobre pessoas e precisam dialogar com as transformações do mundo.

 O exercício do privilégio

Luvvie Ajayi, autora do best seller I’m Judging You: The Do-Better Manual e critica de cultura pop, que como Soloway também esteve na The Makers Conference em fevereiro, abriu a 3% convidando diferenças ao palco. Latinos, brancos, negros, jovens, velhos, gays, trans, heteros, homens, mulheres, portadores de necessidades especiais, formaram juntos uma linha, um com a mão no ombro do outro. Em resposta a perguntas que definiam diferentes níveis de privilégio ou dificuldade, cada um dava um passo à frente ou atrás. A cada resposta, as pessoas se aproximavam ou se afastavam umas das outras e menos pessoas permaneciam à frente.

Uma das pessoas mais à frente se colocou como um homem gay asiático e disse que não esperava estar à frente de tantas outras pessoas, ele descobriu que nunca havia se percebido como privilegiado em relação a outras minorias. Minoria, nesse caso, não é uma referência a quantos somos, mas ao quanto estamos sendo representados pelo sistema. Nesse sentido, homens gays asiáticos, mulheres, transexuais, negros, mulheres gays e vários outros grupos, independentemente de seu tamanho, são minorias.

Outra pessoa com a qual conversamos contou o quanto foi forte o momento em que sentiu que sua mão se soltou do ombro de quem estava ao seu lado fazendo com que a conexão se perdesse – uma dessas pessoas ficou para trás e ele sentiu mal ao ter a sensação de que não podia fazer nada para trazê-la para o mesmo lugar que ele estava ocupando. A consciência de que os privilégios nos colocam em posições diferentes uns dos outros e de que só enxergamos o que está ao nosso lado e a nossa frente nos dá a oportunidade de mudar de comportamento. Foi sobre isso que falou uma das pessoas que permaneceu sempre mais à frente que os outros, quando disse que, durante a dinâmica, havia percebido que sua posição de privilégio a impedia de ver quem ficou para trás enquanto quem estava atrás podia ver onde ela estava e sentir a distância.

Os privilégios mantêm menos pessoas à frente vendo menos e mais pessoas atrás, com maior campo de visão e consciência, menor poder de influência e sendo menos consideradas e representadas pelas decisões de quem está na frente. Ao ganhar essa consciência, quem está à frente pode usar sua voz e suas atitudes para mudar o jogo muito mais rapidamente.

3% no Brasil?

Quando ganhamos voz aumentamos nosso poder de influência e somos mais capazes de transformar a realidade. Isso vale para qualquer pessoa, em qualquer lugar em que esteja nessa cadeia de privilégios. Dentro de uma corporação, isso significa que não existe um lugar a partir do qual não possamos agir. Como quem cria e autoriza policies ou como quem abre espaço para uma mulher que foi interrompida dizer o que pensa, estamos influenciando a cadeia de privilégios e diminuindo as distâncias entre as pessoas e das pessoas para o topo do poder.

O nível de consciência que cada corporação e profissionais constrói a respeito de privilégios ajuda a minimizar em muito os conflitos e barreiras para tirar o melhor das pessoas, independente do grupo ao qual ele pertença. Fica muito claro que quanto menos privilégio em relação aos seus próprios privilégios, menos visibilidade as pessoas têm em relação ao todo e, principalmente, em relação àqueles que ficaram pra traz no caminho.

Já foram realizados eventos em outros países como Austrália, Canadá e em muitas cidades nos Estados Unidos. A 3% agora está mirando o Brasil. O País é o segundo público mais importante para o movimento nas suas redes digitais, atrás apenas dos Estados Unidos. Nos últimos dois anos, o diálogo e o conflito, no sentido construtivo, em relação aos temas de gênero e diversidade surgiram e ganharam muita força no mercado brasileiro. Consultorias, coletivos e entidades de classe trouxeram importantes discussões para a pauta sobre gênero, raça, minorias e privilégios e ganharam muito engajamento entre pessoas de todos os grupos sociais na indústria. A participação estruturada da 3% no momento do Brasil contribuirá muito para dar mais voz a diferentes agentes e aumentar o nível de consciência para transformação.

 

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