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Opinião

O sonho chinês

Existem claros sinais de que o país quer ir além da liderança econômica e comercial do planeta; eles também querem a liderança tecnológica


13 de fevereiro de 2019 - 16h42

Imagem da China unicamente como fabricante de bugigangas é ultrapassada (Crédito: Mauro Segura)

Há dez anos, um dos meus filhos entrou em casa com o livro “Como aprender tudo de Chinês” em mãos e disse: “Vou aprender mandarim”. Por iniciativa própria, ele se matriculou em uma escola de mandarim, que frequentou durante alguns anos. Muito antes, na minha adolescência, eu li um livro chamado “Henfil na China (antes da Coca-Cola)”, onde o autor contava a sua aventura no país do sol nascente, que na época era um país comunista, fechado e “hostil”. Acho que essas foram as maiores conexões que tive com a China até hoje, além da infinidade de produtos “made in China” que tenho em casa.

Ao longo do último ano parece que explodiram notícias sobre a China na minha frente. Isso me fez ficar mais alerta, permitindo montar um quebra cabeça de informações que reforçam um movimento consistente e estratégico de um país em busca de maior protagonismo mundial.

De forma geral, torcemos o nariz quando alguém afirma que a China sonha em ser o maior hub de inovação do mundo, afinal, ainda carregamos no subconsciente a imagem da China como fabricante de bugigangas e produtos de pouco valor. Definitivamente, essa é uma imagem ultrapassada. Existem claros sinais de que o país persegue o objetivo de ir além da liderança econômica e comercial do planeta. Eles querem a liderança tecnológica.

Em 2017, jornais divulgaram o plano do governo chinês para que os chineses se tornem protagonistas no campo da inteligência artificial, além da definição de metas ambiciosas para energias renováveis, robótica, carros elétricos e outros setores. Anos antes, o plano batizado de “Made in China 2025” foi divulgado, assumindo publicamente o objetivo de transformar a China no maior centro tecnológico do mundo.

Uma matéria publicada por O Globo apresenta dados evidenciando a “invasão” chinesa em diversas áreas. Eis algumas delas.

Grandes empresas de base tecnológica:
– Os Estados Unidos são sede de empresas como Apple, Facebook, Google, IBM e Microsoft.
– A China é sede de empresas como Alibaba, Baidu, Huawei e Tencent.

Propriedade intelectual (segundo relatório da Organização Mundial de Propriedade Intelectual, da ONU):
– Os EUA registraram 607 mil pedidos de patentes em 2017
– A China registrou 1,38 milhão de patentes em 2017

Startups de Inteligência Artificial
– Os EUA responderam por 38% do total aplicado globalmente
– A China responde por 48% do total aplicado globalmente

Na área da supercomputação, os chineses já alcançaram o maior número de máquinas entre os 500 supercomputadores do mundo. Aproximadamente, 45% de todos os supercomputadores estão instalados na China. No entanto, os sistemas nos EUA são, em média, mais potentes, o que permitiu aos norte-americanos (38%) ficar à frente da China (31%), em termos de desempenho instalado, segundo a última lista publicada. O mais poderoso supercomputador do mundo é o IBM Summit, instalado no Oak Ridge National Laboratory, no Tennesse – EUA.

Na área de energias renováveis são várias as evidências do avanço da China, como a liderança no mercado global de painéis solares, onde o país detém 55% de participação versus EUA, Índia e Japão que, somados, alcançam 30%.

O incentivo do governo e o ambiente favorável criaram um fenômeno no mercado chinês de veículos elétricos. De acordo com os dados da Flitch, as montadoras e startups chinesas terão capacidade de produção de 20 milhões de carros elétricos em 2020. A título de comparação, a produção anual total brasileira de automóveis não chega a três milhões de unidades.

De acordo com o Bloomberg New Energy Finance (BNEF) em função da capacidade de produção da indústria da China, estima-se que o país fabricará 70% das baterias de veículos elétricos do mundo até 2021.

Das 50 startups mais valiosas do mundo, 22 são chinesas, incluindo as duas primeiras do ranking: Ant Financial e Bytedance. Já os EUA têm 18 empresas no ranking.

A China tem 160 unicórnios (empresas de tecnologia que valem mais de US$ 1 bilhão) que no Brasil poucos já ouviram falar. O maior unicórnio do mundo, avaliado em US$ 156 bilhões, é a Ant Financial, financeira do Grupo Alibaba.

O governo chinês vem investindo fortemente no nascimento e desenvolvimento de startups. São milhares delas, muitas desenvolvendo tecnologia própria e outras se alavancando de tecnologias já existentes, como por exemplo a Lingville AI Global. Essa startup, de inteligência artificial, é uma das empresas que se beneficiam desse ambiente focado em inovação. Fundada em 2018, fechou uma parceria com a IBM para ser a única empresa da China a usar o sistema Watson para reconhecimento de idiomas.

Todo esse contexto cria um ambiente mais que favorável para inovação, que não apenas gera euforia, mas também cria uma base sustentável para investidores globais, estabelecendo o surgimento de um novo hub global de inovação frente ao conhecido Vale do Silício.

No entanto, o contexto positivo que citei até aqui não é garantia de um futuro dourado para a China. Existem críticos que afirmam que o país tem um lado pouco brilhante diante do extremo dinamismo e empreendedorismo tecnológico. A alta carga horária de trabalho no país cria o esquema 9/9 por 6, ou seja, das 9 horas da manhã às 9 horas da noite, seis dias por semana. Empreendedores dizem que é comum se deparar com trabalhadores dormindo sobre suas mesas de escritório. A intensa maratona vivida pelo trabalhador chinês é algo negativo recorrentemente citado pelos estrangeiros que vivem no país.

A mão pesada do governo chinês ao mesmo que tempo que funciona para o bem do empreendedorismo também pode ser danosa, se o mesmo governo avalia que o negócio sendo empreendido não atende aos interesses do país.

Outro aspecto preocupante é o declínio da população economicamente ativa no país, além do crescimento do endividamento da população. Esses são fatores severos que inibem o crescimento do consumo interno e o aumento da parcela de renda das famílias chinesas no PIB.

Olhar o cenário mundial nos faz imaginar que a próxima década será ocupada pelo protagonismo bipolar dos EUA e da China. No entanto, é possível imaginar um terceiro integrante participando desse bloco de gigantes, transformando a dupla em trio. Estou falando da Índia, que num futuro próximo tende a ser o país mais populoso do mundo.

A Índia é um país mais pobre que a China e, portanto, com grande potencial de alcançar o crescimento acelerado para atender o seu desenvolvimento interno como nação. Esse contexto, muito possivelmente, vai inibir, por algum tempo, o protagonismo da Índia no cenário mundial porque o país estará muito entretido em lidar como os gigantes desafios que enfrentará dentro de suas próprias fronteiras. A título de curiosidade, China e Índia juntos têm hoje 37% da população do planeta de 7,6 bilhões de pessoas, ou seja, são gigantes com uma força de trabalho desproporcional ao restante do mundo.

Por fim, a China também vem ganhando espaço na balança comercial com o Brasil. Segundo dados do governo brasileiro, o volume exportado aos chineses em 2017 foi de US$ 47,4 bilhões, 35,1% a mais do que em 2016. Treze dos 25 Estados brasileiros tiveram na China seu principal parceiro comercial. O país é responsável por 22% das nossas exportações e 18% das importações.

Segundo matéria do jornal Valor, os executivos brasileiros estão mais interessados por MBAs que ensinam fazer negócios na China. Por isso, mais instituições estão lançando cursos e especializações que incluem experiências na China. O fenômeno não tem origem apenas pelo interesse de quem trabalha ou se relaciona com empresas chinesas, mas também por aqueles que consideram trabalhar em corporações do país no futuro.

Certamente, precisamos aprender mais sobre a China, até porque eles estão invadindo outras praias. Tente visitar qualquer ponto turístico do mundo, qualquer mesmo, e lá você vai se deparar com chineses ao seu lado. A China desistiu de esperar que o mundo aprenda mandarim, eles partiram para aprender inglês, a língua mundial dos negócios. Podemos até não ir para a China ou trabalhar em uma empresa chinesa, mas não dá para ficar indiferente à dinâmica ocorrendo no mundo diante de nossos olhos.

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