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Opinião

Pagando para ver

Ao colocar à prova sua trajetória ascendente de valor de mercado, a Nike fez uma aposta ousada para demonstrar capacidade de interpretar a cultura do seu tempo em prol dos negócios


17 de setembro de 2018 - 11h38

Crédito: Reprodução/Nike

Na quinta-feira 13, as ações da Nike atingiram o seu valor bruto mais alto para o fechamento de um dia de negociações na bolsa, desde que se tornou uma empresa de capital aberto, em 1980.

O recorde foi registrado na semana seguinte à veiculação do anúncio em comemoração aos 30 anos do slogan “Just Do It”, estrelado pelo jogador de futebol americano Colin Kaepernick — cuja renovação de contrato com a marca de artigos esportivos veio à tona em uma data emblemática para alguém que está desempregado desde 2016: o feriado do Dia do Trabalho, celebrado nos Estados Unidos na primeira segunda-feira do mês de setembro.

(Recapitulando: naquela temporada, Kaepernick, então jogador do San Francisco 49ers, iniciou uma série de manifestações em jogos da NFL, ao ajoelhar durante a execução do hino nacional antes dos jogos da liga de futebol americano, em protesto contra o preconceito racial e a violência policial contra a população negra nos Estados Unidos. A postura foi criticada por quem viu na atitude um desrespeito à bandeira do país e sua história, entre eles o presidente Donald Trump. Foi a última temporada em que Kaepernick teve contrato com uma equipe da NFL).

É preciso registrar que ao longo do ano o desempenho dos papeis da companhia é muito superior ao do mercado, com crescimento acima de 30%. Desde o dia 4 de setembro, quando as ações caíram 3%, após as primeiras repercussões negativas relacionadas ao anúncio, a alta já passou dos 5%.

O preço de uma ação é estabelecido por uma série de variáveis, mas sua flutuação basicamente reflete a crença de momento do mercado no potencial de uma empresa em continuar relevante dentro do seu setor, gerando dividendos mais atrativos a seus acionistas do que outras oportunidades de investimentos. A longevidade dessa oportunidade de lucro é um componente fundamental nessa equação.

Ao colocar à prova sua trajetória ascendente de valor de mercado com a campanha que certamente geraria um debate polarizado, a Nike fez uma aposta ousada para demonstrar capacidade de interpretar a cultura do seu tempo em prol dos negócios. A estratégia exige convicção, propósito e sangue frio, mas a campanha com Kaepernick entrará para os manuais de marketing contemporâneos. A empresa literalmente pagou para ver o tamanho de sua influência — e até aqui, parece que valeu a pena.

De acordo com a consultoria Edison Trends, após a veiculação do anúncio com Kaepernick, a comercialização dos calçados da Nike subiu 31% entre o domingo 2 de setembro e a terça-feira 4, quase o dobro do crescimento de 17% registrado para o mesmo período em 2017. Quando se detalha as estatísticas, percebe-se que a aprovação à atitude da empresa não foi uniforme: as vendas caíram em estados com população historicamente mais conservadora, como Idaho, Wyoming e Dakota do Sul. As maiores altas foram registradas em estados tradicionalmente mais liberais, como Maryland, New Jersey e Massachusetts.

A Nike nunca se posicionou contra a bandeira americana, mas a favor de um cidadão se manifestar de forma transparente e legítima, de acordo com suas crenças.

Quando, corajosamente, a empresa resolveu dar suporte e palco para as ideias de Colin Kaepernick, também já contava com o direito de quem odiasse a campanha (ou é contra a atitude do atleta) de expor publicamente sua indignação e convocar outras pessoas a fazer o mesmo — o que de fato aconteceu, com a queima e a incitação ao boicote de produtos da marca. E segue o jogo.

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