Venda ou propósito?
Os riscos de a marca se distrair com o idealismo de causas que melhoram o mundo e perder o foco no giro comercial dos seus produtos e serviços
Os riscos de a marca se distrair com o idealismo de causas que melhoram o mundo e perder o foco no giro comercial dos seus produtos e serviços
Partindo do princípio básico de que marcas precisam oferecer algo de real valor aos consumidores e, assim — quando conseguem e são bem geridas —, compensar financeiramente o investimento de seus acionistas, onde entra nessa conta os propósitos de melhoria da sociedade tão em voga na comunicação atual de muitas delas?
Essa foi uma das dúvidas levadas pelos jornalistas de Meio & Mensagem ao Festival Internacional de Criatividade de Cannes. É prática da redação ir ao evento não só para reportar a corrida pelos prêmios, os bastidores dos júris e os temas dos debates que aglutinam maior atenção nos seminários, mas também para aproveitar a concentração de executivos de marcas, agências e mídia para com eles esmiuçar temas que consideramos relevantes para os leitores e o mercado.
Para citar alguns exemplos dos três anos anteriores do que aqui chamamos de “pós-Cannes”, ocuparam nossas páginas entrevistas com nomes como Martin Sorrell, Marc Pritchard, Wendy Clark e Nick Law, e reportagens sobre temas como o impacto na criação publicitária do uso de dados e de tecnologias como inteligência artificial e realidade virtual, e a migração de profissionais criativos para plataformas digitais.
Neste ano, depois de analisar os assuntos que se mostravam mais interessantes na agenda do festival e de eventos paralelos, a repórter Roseani Rocha foi a Cannes com a incumbência, entre outras, de procurar novas abordagens para a busca das marcas pelo equilíbrio entre lucro e propósito social. Lá, ela encontrou diversos executivos de grandes marcas preocupados em conciliar o clássico retorno sobre investimento (ROI) com o esforço em contribuir para melhorar o mundo (chamado de RODG, return on doing good).
A questão nos pareceu pertinente, mesmo considerando que há diversas teses que incentivam a adoção pelas marcas de ações capazes de melhorar o mundo, inclusive comprovando como a prática é capaz de maximizar o retorno aos investidores a partir da gestão de impactos socioambientais e contribuição positiva para a sociedade.
Evidentemente, criar valor para os acionistas e investir em um propósito social não são caminhos excludentes. Mesmo sendo movidas pelo lucro, as empresas têm dimensões éticas com as quais se preocupar.
O objetivo da marca que envereda pela trilha de melhorar o mundo está geralmente atrelado à crença de que a ação fará bem à sua imagem. Mas as armadilhas são muitas, entre as quais a do oportunismo de embarcar em uma causa não suficientemente alinhada com a cultura — e a prática — da empresa. Além disso, o ato de comunicar algo traz consigo responsabilidades que precisam conversar com a agenda do momento, a despeito dos questionamentos públicos invalidarem o esforço e o dinheiro envolvidos.
Ávidas por um selo de ética ou um verniz progressista, muitas companhias são pegas no contrapé ao propagar credenciais duvidosas ou aderir ao ativismo social sem lastro, apenas para fins publicitários, e expor a desconexão entre o marketing e o seu comportamento real. Além disso, é preciso considerar que, com o império atual da transparência nutrido por um público muito mais vigilante e relutante, a mensagem de que está salvando o planeta não será suficiente para varrer para debaixo do tapete práticas tóxicas.
E, considerando que é muito difícil melhorar o mundo do dia para a noite, a busca de metas e métricas claras que ajudem a justificar as decisões tomadas estão entre os tópicos que atormentam os decisores das marcas. Ainda mais no desconfortável cenário atual, em que a cobrança no curto prazo põe sub judice campanhas em que a protagonista não é a venda do produto, mas sim uma causa. E mesmo quando as marcas assumem, com verdade e honestidade, um propósito social, é arriscado se distrair com o idealismo e perder o foco no giro comercial dos seus produtos e serviços. Ao comprometer sua saúde financeira, será inviável investir em melhorar o mundo.
*Crédito da foto no topo: Reprodução
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