Marcas, artistas e a política
Para evitar desgaste, muitas empresas escolheram priorizar neutralidade, previsibilidade e a redução de qualquer ruído que desvie o foco da campanha
O acirramento da divisão política no País transformou de forma profunda a relação entre marcas, artistas e influenciadores. Depois de mais de quinze anos trabalhando com curadoria artística para publicidade, tenho visto essa mudança se consolidar não como um movimento passageiro, mas como uma nova camada estrutural do nosso mercado.
O que antes era uma cláusula proforma sobre política ou religião começou a ganhar peso nas negociações. Durante a pandemia, esse movimento se intensificou, influenciando nas entrelinhas do briefing quem era considerado adequado para campanhas. Agora, porém, esse critério deixou de operar nos bastidores e passou a ser explicitado: marcas passaram a escolher talentos mais neutros, menos “politizados” para estrelar suas campanhas ou até mesmo solicitar que talentos contratados evitem manifestações políticas ou religiosas durante a vigência das suas campanhas. Os artistas, por sua vez, têm defendido o direito de expressar convicções que fazem parte de sua identidade e de sua atuação social.
Do lado das marcas, há uma lógica clara. Em um país dividido, qualquer posicionamento pode ser interpretado como alinhamento partidário ou ideológico e gerar risco reputacional. Para evitar desgaste, muitas empresas escolheram priorizar neutralidade, previsibilidade e a redução de qualquer ruído que desvie o foco da campanha.
Mas, ao mesmo tempo, a sociedade caminhou na direção oposta. Nos momentos mais críticos, até mesmo artistas que optaram por não se posicionar foram cobrados insistentemente nas redes sociais, rotulados de isentões. O silêncio passou a ser lido como escolha. Não escolher se tornou a escolha. Assim, artistas passaram a enfrentar pressões contraditórias: marcas que pedem silêncio e um público que exige voz.
Nesse contexto, as áreas de compliance ganharam protagonismo. Com a ampliação da vigilância pública, esses departamentos expandiram o escopo de avaliação de risco. O que antes era uma checagem restrita a condutas inadequadas passou a incluir
posicionamentos políticos e manifestações religiosas, temas presentes nas políticas internas de muitas empresas. Sem diferenciar opinião legítima de risco efetivo, vários filtros passaram a recomendar cautela máxima. E, na prática, isso tem afastado talentos que não representam risco ético ou legal, mas apenas exercem sua liberdade de expressão.
O resultado é um dilema que ainda não sabemos resolver plenamente. Como equilibrar a autenticidade dos artistas — justamente aquilo que sustenta sua credibilidade e sua influência — com a cautela das marcas em um ambiente social sensível? Como distinguir risco real de receio projetado? E o que perdemos, como indústria, quando normalizamos um silêncio estratégico que empobrece o diálogo cultural?
Se a publicidade pretende continuar relevante, precisa reconhecer a pluralidade que compõe a sociedade brasileira e abandonar a ideia de que a neutralização das vozes é a única forma de proteção. Talvez o maior risco, hoje, não esteja no posicionamento dos artistas, mas na dificuldade do mercado de lidar com a complexidade do presente sem reduzir a liberdade de expressão a um problema a ser evitado.